Turbulência sobre os céus da Síria

Ilustração: Valéri Kurtu

Ilustração: Valéri Kurtu

Conflito atraiu reforço do Reino Unido e da Alemanha, que decidiram unir forças para a expansão de ataques aéreos contra o Estado Islâmico. À espera de apoio regional, ações impõem dúvida sobre eficácia de acordo entre países com objetivos tão diferentes.

Os ataques terroristas em Paris e no Sinai e, ainda mais, a intervenção russa na guerra civil síria, aumentaram acentuadamente a crise local. Os esforços internacionais de combate ao Estado Islâmico (EI) incluem cada vez mais novos intervenientes externos, não regionais, como o Reino Unido e a Alemanha, que antes não mostravam desejo de participação ativa no conflito.

Podemos, então, esperar uma coalizão contra o terror da qual todos falam? Dificilmente. Os objetivos e missões daqueles que tomariam parte dessa coalizão não coincidem.

A situação é paradoxal. Apesar de todas as diferenças de abordagem dos agentes externos – EUA, França e Rússia, entre outros –, todos identificam como principal inimigo o EI, que, em situação ideal, deveria ser eliminado, ou ao menos contido. Para resolver esse problema é preciso o apoio ativo dos intervenientes regionais, isto é, na própria Síria e no Oriente Médio como um todo. Eles é que deveriam empreender as principais ações de combate – mas logo se percebe que suas prioridades não batem.

Players regionais

Para a Turquia, a principal ameaça vem da questão curda, hoje considerada entre os turcos mais perigosa do que o EI. A Arábia Saudita teme mais a expansão do Irã (mais especificamente, do xiita) do que os seguidores do líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi. O Irã faz um jogo regional complexo, e o EI é apenas uma de suas orientações. O presidente sírio Bashar al-Assad tem um leque de opositores bastante amplo, e os radicais islâmicos são apenas alguns deles. E o resto dos países da região tenta freneticamente manter o controle de sua própria situação, o que os obriga a fazer manobras a todo momento. O EI não é visto por eles como um inimigo real.

Diante desse contexto, exclui-se praticamente qualquer possibilidade de uma ampla coalizão; por outro lado, o cenário atual traz às potências externas uma perspectiva desagradável. Sabe-se, e fala-se, que o EI só será derrotado se for vencido em terra. Todos aqueles que vivem no Oriente Médio deveriam, portanto, combater o EI, sobretudo porque a região costuma amaldiçoar os “colonialistas” pelas intervenções.

O problema é que, se eles partirem para a guerra, não vão combater o terrorismo, mas lutarão uns contra os outros, e isso não pode ser permitido. O aprofundamento da presença militar pode, assim, se tornar a saída tanto para a Rússia, como para os Estados Unidos, a França e países aliados. Mas todos sabem o que trazem consigo as intervenções diretas no Oriente Médio.

Os motivos de Moscou

São vários os fatores que motivam a Rússia a intervir na Síria. A ameaça de propagação desenfreada do terrorismo é o principal deles, mas outro fator óbvio são as relações com o governo sírio, um parceiro de longa data. Em meados do ano, ficou claro que os recursos do regime sírio já estavam escassos, embora o país estivesse muito mais forte do que previsto pelos países ocidentais em 2011. A prolongada guerra, porém, não teve como evitar rastros e a queda de Assad seria vista como uma grande derrota de Moscou.

Motivos políticos também tiveram o seu papel. Por exemplo, o desejo de expandir o campo de conversações com o Ocidente, que, nos últimos dois anos, foi quase exclusivamente reduzido ao tema ucraniano e ao processo de Minsk.

A atuação russa na Síria deve, no entanto, ser vista num contexto global mais amplo. Moscou se apropriou do direito que até então era – há 25 anos, desde o início da operação Tempestade no Deserto – monopólio dos Estados Unidos: recorrer à força para restaurar a ordem internacional, exercendo o papel de “polícia do mundo”.

Tabuleiro novo

Naquele cenário unipolar subentendia-se que só os EUA, com o apoio de seus aliados, podiam conduzir guerras “em nome da paz” – embora relacionadas à conquista de objetivos próprios. Ao iniciar uma operação de guerra, Moscou alterou, então, o equilíbrio de poder e as perpectivas de solução de um grave conflito internacional, apesar de isso não lhe trazer benefícios práticos. Esta é prerrogativa de uma aliança político-militar superior, capaz de ditar a agenda.

O conflito na Síria deve também dar um ponto final às soluções “ideológico-humanitárias” na regularização de crises locais. Até recentemente, o elemento essencial na discussão de guerras civis consistia em determinar o governo local como culpado por crimes contra o próprio povo e pela repressão a protesto e manifestações. O dirigente cuja reputação era manchada por esse tipo de comportamento passava a fazer parte da categoria dos que “perdem a legitimidade” e, consequentemente, não havia mais motivo para se dialogar com ele.

Saddam Hussein e Muammar Gaddafi passaram por esse caminho, Assad estava seguindo pelo mesmo destino. No entanto, a componente humanitária parece mais uma vez dar lugar a abordagem realista: a divisão entre bons e os maus leva a um beco sem saída, já que será necessário negociar com todos.

Influência sob equilíbrio

O Kremlin tem pela frente um complicado número de equilibrismo.

Em primeiro lugar, deve garantir sua presença geopolítica na Síria, independentemente da configuração de poder após a crise. Mas também não pode prejudicar as relações com Teerã, que acredita que qualquer mudança será fatal para o domínio iraniano sobre Damasco. O problema é que a epopeia síria é quase o único tópico que cimenta essas relações, já que, em todos os outros aspectos, o Irã guarda ressalvas quanto à Rússia. Moscou deve, assim, ter cautela para não se tornar uma potência servindo os interesses regionais do Irã, como os Estados Unidos fazem há anos com a Arábia Saudita.

A escalada dos acontecimentos nos obriga ainda a chegar a outra conclusão nada reconfortante. Hoje não se fala mais do futuro da Síria, mas do de toda a região, e a resolução do conflito regional não é possível sem a reestruturação política do Oriente Médio. Esse problema é maior e apresenta riscos mais elevados. Mas, como se vê, a Rússia de hoje não teme desafios.

Fiódor Lukianov é editor-chefe da revista Russia in Global Affairs e professor de pesquisa na Universidade Nacional de Pesquisas da Escola Superior de Economia.

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