O show (de Trump) não pode parar

Ilustração: Iorsh

Ilustração: Iorsh

Qual será a política externa do 45º presidente dos Estados Unidos Donald Trump? O mundo inteiro está interessado nessa questão, mas para a Rússia e, particularmente, para Pútin, a questão primordial é como será a política de Washington em relação a Moscou.

Poucos observadores realmente acreditavam na vitória de Trump, por isso, toda a atenção estava focada basicamente na equipe de política externa da ex-secretária de Estado Hillary Clinton. Sobre Trump, dizia-se apenas que não entendia de política externa e que seus consultores sobre o tema eram pessoas pouco conhecidas.

A busca por assessores competentes poderá, porém, ser resolvida em um curto período de tempo. A comunidade de especialistas nos Estados Unidos é rica em talentos, e, agora, o número de interessados em passar – ou correr – para o campo do inesperado vencedor da mais imprevisível corrida da história americana do pós-guerra será mais do que suficiente.

Por tradição, o presidente dos Estados Unidos imprime uma profunda marca pessoal na política externa do país e possui poderes mais amplos, se comparados à política interna. As previsões são de que a política externa de Trump será bastante expressiva, em todos os aspectos. Porém, não tão expressiva como se poderia pensar ao ouvir suas declarações impactantes, calculadas para impressionar o público antes das eleições.

É improvável, por exemplo, que no dia seguinte à tomada de posse ele já comece a construir um muro na fronteira com o México para evitar o fluxo de imigrantes ilegais. Uma construção dessa envergadura exigiria muito dinheiro, e o direito de aprovar qualquer verba orçamentária pertence exclusivamente à Câmara dos Deputados dos EUA e ninguém mais. Isso não quer dizer que Trump não tentará apertar a política de imigração, e, certamente, ele não irá implementar o plano de Obama referente à concessão de anistia a 7 milhões de imigrantes ilegais já no país.

Trump também não apoiará qualquer plano global de integração no setor de comércio, a exemplo do que ocorre com o Transpacífico. Pelo contrário, ele tentará consolidar a tendência que já começou a ser esboçada – a de um retorno gradual ao país de postos de trabalho criados por corporações norte-americanas. Uma guerra comercial contra a China é ainda menos provável, mas é fato que ele tentará chegar a acordos sobre “relações de compromisso” e algumas concessões com o gigante asiático.

No que diz respeito às relações com a Rússia, caso Clinton tivesse sido eleita, elas provavelmente estariam condenadas, no mínimo, à estagnação e, na pior das hipóteses, a maior degradação e até mesmo uma perigosa escalada. A eleição do republicano dá uma chance para que esse movimento não se estabeleça.

Considerando seu perfil psicológico, o excêntrico e extrovertido Trump dá a impressão de ser o total oposto do ‘fechadão’ Vladímir Pútin. No entanto, parece que o ex-coronel da KGB sente-se mais confortável em se comunicar com pessoas mais abertas e francas (mesmo que elas estejam expressando um juízo oposto) do que com pessoas como Hillary Clinton.

Muitos a consideram falsa e hipócrita não só nos Estados Unidos, mas também em Moscou. Além disso, suspeita-se de que ela, enquanto encabeçava o Departamento de Estado, tenha iniciado e “financiado” as ações de protesto em Moscou no outono de 2011 e na primavera de 2010. Nem dá para imaginar como Pútin e Hillary poderiam dialogar com calma, sem se irritar mutuamente, depois das declarações mais do que duras endereçadas à Rússia e pessoalmente a Pútin durante a campanha eleitoral, e das acusações de que o Kremlin queria atrapalhar a eleição ou instalar o fantoche Trump na Casa Branca. Esse tipo de histórico não existe nas relações com o republicano e, assim, será possível iniciá-las do zero.

Nesse sentido, Trump lembra, em parte, Silvio Berlusconi, que tempos atrás foi o “amigo europeu mais importante de Moscou”. Mas o risco dele é, sendo um homem impulsivo e inexperiente quanto à diplomacia, dizer algum “disparate”, inclusive dirigido a Pútin. Como as relações EUA-Rússia continuam muito dependentes das relações pessoais entre os chefes de Estado, isso poderia levar a uma rápida deterioração da situação, seguindo o velho princípio de que “apenas um passo separa o amor do ódio”.  

Hoje Pútin foi um dos primeiros líderes mundiais a ligar para Trump para felicitá-lo pela vitória (cabe lembrar aqui o presidente russo foi também o primeiro a ligar para o então presidente Bush em 11 de setembro de 2001 para expressar solidariedade na luta contra o terrorismo e dar condolências às vítimas dos atentados). Depois disso, veio o famoso “discurso de Munique”, repleto de frustração com as relações com o Ocidente em geral e, sobretudo, com os Estados Unidos. Da mesma forma, agora, ninguém sabe no que irá se transformar o slogan de Trump “Make America Great Again” (Vamos tornar os EUA grandiosos de novo). Se a presumida guinada rumo ao neoisolacionismo e à não intervenção global se consolidar, haverá um impacto positivo nas relações com Moscou.

Se Trump permanecer fiel a suas declarações durante a campanha (embora não totalmente claras) de que os EUA não precisam interferir nos assuntos da Ucrânia – e que Washington não está nem mesmo interessado no destino da Crimeia –, isso também pode construir uma sólida base para um novo reinício. Assim como será importante o fim da pressão exercida pelos EUA sobre a Europa para que as sanções contra a Rússia não sejam suavizadas. Apesar de que, mesmo se quisesse, Trump não conseguiria amenizar ou suspender as medidas proibitivas americanas facilmente, pois em seu caminho surgiria uma maioria republicana não muito obediente, sem falar dos democratas nas duas casas do Congresso.

Por outro lado, em troca da redução do apoio a Kiev, Moscou poderia flexibilizar sua postura e respeitar os interesses de Washington na questão síria – isto é, se a Síria continuar em primeiro plano no escopo de política externa dos Estados Unidos sob Trump. Além do mais, é inegável que o Kremlin aprova as declarações iniciais do republicano sobre a transferência da responsabilidade financeira e militar da Otan para os aliados europeus.

Não se deve pensar, contudo, que Trump irá desistir da implantação do sistema global de defesa antimísseis que tanto preocupa Moscou: isso está em perfeito acordo com sua retórica neoisolacionista. Os planos do presidente dos EUA recém-eleito de retomar a produção de petróleo no Alasca também podem ter impacto negativo na economia russa, pois levarão à  queda nos preços globais dos combustíveis, sua principal fonte de receitas de exportação.

Assim, apesar de ser um enigma em muitos aspectos, Trump representa a esperança de redefinição nas relações entre a Rússia e os Estados Unidos. Independentemente disso, no cenário internacional, os EUA de Trump terão uma cara completamente diferente do país liderado por Barack Obama, ou até mesmo sob o comando do antecessor George W. Bush.

Geórgui Bovt é membro do Conselho para a Política Externa e de Defesa.

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