Um mistério chamado Svetlana

Ilustração: Dmítri Dívin

Ilustração: Dmítri Dívin

Nobel dá voz a uma literatura de extremos ainda sem tradução no Brasil

Finalmente, a bielorrussa Svetlana Alexievich (pronuncia-se "Aleksiêvitch") recebe o Nobel de Literatura. Aos 67 anos, a bielorrussa já havia frequentado a lista da academia sueca algumas vezes - sempre sem sucesso.

Dona de obra respeitável, situada no limite entre o jornalismo e a literatura, e que deu voz a vítimas de guerras, tragédias como a de Tchernóbil e do fim da União Soviética, Alexievich emerge agora com força no Ocidente.

Como a 112a laureada pelo Nobel, a bielorrussa é só a 14a mulher na lista. E apenas a 4a a trabalhar com textos de “não ficção”. E é justamente esse seu aspecto mais interessante: como ela mostra a vida real, montada como um quebra-cabeças, em narrativas orgânicas, dolorosamente coloridas por aspectos cotidianos.

Percorrer sua obra é como andar por um museu de palavras e experiências - onde podemos ver as coisas tanto pelos olhos de quem conta as histórias, quanto pelos de quem as escreve.

Polifônica

A secretária permanente da academia sueca, Sara Danius, definiu o estilo polifônico de Alexievich como “um novo gênero literário” e “um memorial ao sofrimento e à coragem na nossa época".

Mas o que é exatamente esse “estilo polifônico” da Nobel de Literatura? Etimologicamente, “polifonia” é uma palavra de origem grega: o prefixo “polys” (muito), o radical “phone” (som) e o sufixo “ikos” (relativo a). Ou seja, simplesmente, “muitos sons”.

Já o conceito de “polifonia”, aplicado à literatura, pode ser resumido na teoria de Mikhail Bakhtin, e explica a multiplicidade de vozes na mesma obra. O grande diferencial de Alexievich, aqui, é dar implacavelmente a cada entrevistado, a cada voz, sua própria visão de mundo.

“Não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas", disse, em uma entrevista. Ao contrário do que se noticia, ela mesma não se define como jornalista. Nem como historiadora. Mas dialoga com gigantes da literatura documental como Soljenitsin e Chalámov. Seja por meio de uma das “vozes” que reproduz, ou de sua própria.

Em “Tempo de Segunda Mão”, por exemplo, sua obra sobre o zeitgeist do fim da União Soviética, ela cita Chalamov, “essa pessoa que ficou enclausurada por 17 anos num campo de prisioneiros stalinista”. E reproduz uma das “vozes”, que relembra: “Tendo lido Soljenítsin, entendi que os ‘ideais perfeitos do comunismo’ estão todos no sangue. Mas isso é mentira...”. De uma forma ou de outra, está tudo lá.

Svetlana Alexievich é de leitura rápida. Vivaz. Seus períodos curtos são de uma oralidade ímpar – assim como o vocabulário simples, a prosa efetiva, o respeito aos desejos das vozes (em “Tempo de Segunda Mão”, ela chega a escrever os nomes de líderes soviéticos em caixa baixa, como pede uma fonte).

A Nobel diz ter se inspirado no compatriota, o escritor Ales Adamovich, e suas "novelas coletivas", "novelas-oratório" ou "coro épico". Após ter passado 11 anos exilada - foi expulsa em 2000 pelo polêmico líder Alexander Lukashenko -, Alexievich criou seu próprio pathos.

"Sempre procurei o método literário que mais me aproximasse da realidade. Então, imediatamente me apropriei desse gênero de vozes humanas reais, confissões, testemunhas oculares e documentos. É assim que ouço e vejo o mundo: como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes cotidianos", explicou, certa vez.

Em outra citação de seu “Tempo de Segunda Mão”, lê-se uma referência direta ao conceito extremamente russo das “pequenas pessoas”, das pequenas tragédias contidas nas coisas mais triviais da vida. Diz uma fonte: “Começava a ‘vida tchekhovskiana’. Sem história. Destruímos tudo o que havia valor, exceto o valor da vida. Da vida em geral”.

Ainda na colcha de retalhos vivos de Svetlana, há lugar para pequenos detalhes que são, na verdade, um mapa literário para grandes objetivos. Como a referência direta a Dostoiévski e sua “Lenda do Grande Inquisidor”, montada com precisão eisensteiniana na primeira parte do livro. Nada ali é por acaso.

Ainda em "Tempo de Segunda Mão", Svetlana por vezes faz aparições entre os relatos – seja para pontuar algum fato extracênico, seja para explicar um pouco de seu modus operandi: “19 de agosto de 2001 - aniversário de dez anos do golpe de agosto. Estou em Irkutsk - a capital da Sibéria. Faço alguns 'povo-fala' pelas ruas da cidade. A pergunta é: ‘O que teria acontecido se o GKTchP [comitê anti-Gorbatchov] tivesse vencido as eleições?’”.  

O fato é que, além das inovações literárias e de seu humanismo, Svetlana Alexievich se torna agora famosa. Salvo “A Guerra não tem rosto feminino”, seu livro de estreia, a escritora é praticamente desconhecida na Rússia, na Ucrânia ou em sua própria Bielorrússia. Também tem poucos de seus livros traduzidos – alguns para o inglês, outros para o francês e o alemão -, mas nada para o português.

Mesmo aquele que talvez seja seu livro mais popular, “Vozes de Tchernóbil” (cujo titulo russo é, em tradução livre, “Oração de Tchernóbil”), não é ainda globalmente conhecido. Ainda que a tradução para o inglês tenha sido laureada com um prêmio em 2005, concedido pela National Book Critics Circle (Círculo National de Críticos Literários, dos EUA), são poucas as línguas com versões do livro.

No Brasil, especificamente, o Nobel de Literatura de 2015 dá início a uma corrida, que deve ter seu fim desenhado nos próximos meses: quem irá editar Svetlana Alexievich?

Fabrício Yuri é jornalista e doutorando em Literatura e Cultura Russa pela USP (Universidade de São Paulo).

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