Fomentador da revolução, em versão brasileira

Nikolai Tchernichévski

Nikolai Tchernichévski

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Uma das obras essenciais das bibliotecas revolucionárias russas, "O que fazer?", de Nikolai Tchernichévski, ganha primeira tradução direta para o português feita pelo historiador da USP Ângelo Segrillo. Querida por Lênin e odiada por Dostoiévski e Nabokov, obra do escritor é polêmica.

Mais de 150 anos após sua primeira publicação, o influente e controverso romance "O que fazer?", de Nikolai Tchernichévski, ganha versão no Brasil, traduzida direto do russo pelo professor de história da Universidade de São Paulo, Ângelo Segrillo, para a Editora Prismas.

Tchernichévski foi um importante crítico literário e escritor russo de meados do século 19. Nasceu em 1828, em Sarátov, em uma família de tradição eclesiástica. Teve a sua formação básica em um seminário local e seguiu carreira secular na Universidade de São Petersburgo, onde estudou letras e filologia entre 1846 e 1850.

Durante os anos de universidade, conheceu a obra dos críticos literários russos Aleksandr Herzen e Vissarion Bielínski, além do filósofo alemão Ludwig Feuerbach.

Aos poucos, abdicou da fé religiosa em favor do materialismo filosófico, convertendo-se em um dos mais radicais membros da intelliguêntsia russa, ou seja os intelectuais do país.

Atividade jornalística

A partir de 1853, passou a trabalhar como crítico literário para a revista “O Contemporâneo”, na qual permaneceu até 1862, quando foi preso e mantido exilado até 1889, ano em que faleceu.

Nikolai Tchernichévski (1859) Foto: wikipedia.org

Em seus artigos como crítico literário, além de divulgar o materialismo feuerbachiano, Tchernichévski defendia certo engajamento social para a obra de arte e a emancipação geral da sociedade russa do jugo do tsarismo.

Uma vez preso, devido a uma acusação nunca comprovada de participação na elaboração de um panfleto político, foi impedido de continuar sua atividade jornalística, sendo liberado, no entanto, para escrever um romance. Dessa maneira, em 1863, publicou em “O Contemporâneo” seu primeiro romance, "O que fazer?".

Emancipação feminina e social

A princípio, o romance narra a história de um triângulo amoroso. A protagonista Vera Pávlona vê-se dividida entre a gratidão e a amizade que tem por seu primeiro marido Dmítri Lopukhov e o amor que surge por seu melhor amigo, Aleksandr Kirssánov. A aparente inocuidade de "O que fazer?", no entanto, dissimulava as verdadeiras intenções de seu autor.

Linguagem esópica

A expressão refere-se ao método de escrita alusiva e camuflada que alguns jornalistas, escritores e críticos literários empregavam como subterfúgio para driblar a censura czarista.

Tchernichévski utilizou-se de expedientes para driblar a censura policial, como a linguagem esópica, visto que redigia de dentro da Fortaleza de São Pedro e São Paulo. Nas entrelinhas do enredo, o que se podia ler eram a denúncia da opressão sobre a mulher e a defesa de seus preceitos éticos e estéticos, e da emancipação geral da sociedade.

Egoísmo racional

Segundo alguns pensadores materialistas e utilitaristas, o ser humano satisfaria seu próprio bem quanto melhor realizasse o bem geral. Daí a expressão 'egoísmo racional', para diferenciar-se do egoísmo unicamente voltado para si.

As questões amorosas e sociais pelas quais passam os personagens Vera, Lopukhóv e Kirssánov não se transformam em conflitos íntimos, mas sim, são resolvidas de acordo com princípios filosóficos e éticos capazes de distinguir entre os desejos verdadeiros e os artificiais, e com base no egoísmo racional.

Os personagens são exemplos de novos homens, igualmente capazes de pensar e de agir de acordo com as suas convicções (distintos, portanto, do niilista Bazárov, de "Pais e Filhos").

Do ponto de vista estético e filosófico, o romance "O que fazer?" reúne características que poderiam classificá-lo como um romance sociofilosófico, segundo a crítica literária soviética Lídia Lotman.

Já do ponto de vista político, "O que fazer?" fez propagar rápida e eficazmente, principalmente entre a juventude intelliguênti, os ideais e a postura ética proposta por Tchernichévski. Mas a obra causaria grande polêmica no seio da crítica literária e do mundo político.

Queridinho de Lênin, odiado por Nabokov e Dostoiévski

Em 1865, o crítico literário radical Dmítri Píssariev elogia a originalidade de Tchernichévski. “Registrando em seu romance todas suas convicções teóricas, Tchernichévski criou uma obra altamente original e, de qualquer ponto de vista que a considere, no mínimo, bastante notável”, escreve em artigo.

Já na década de 1890, sua atualidade ainda era notada por Gueórgui Plekhanov. “[O romance] possui uma grande dose de humor e reflexão e está imbuído de uma paixão tão ardente pela verdade que torna a leitura muito interessante para os dias de hoje.”

Em janeiro de 1904, em uma conversa que teve com Vladimir Lênin, o jornalista russo Nikolai Valentinov registraria as palavras do líder revolucionário a respeito de "O que fazer?": “Sob sua influência, centenas de pessoas tornaram-se revolucionárias. (...) Ele cativou, por exemplo, meu irmão, assim como me fascinou”.

Lênin também teria revelado na ocasião que foi em referência ao romance que intitulou seu próprio "O que fazer?", de 1902.

Outro importante estrato da intelliguêntsia, contudo, não identificado integralmente com as concepções filosóficas, estéticas e políticas de Tchernichévski, também fez render publicidade à obra.

No mesmo ano de sua publicação, em 1863, o escritor Nikolai Leskov registraria que "O que fazer?" era difícil de ler, pois “completamente desprovido do que é chamado [mérito] artístico”.

Foto: Divulgação

Décadas mais tarde, Vladímir Nabokov, publicaria um romance contra as concepções filosóficas e estéticas de Tchernichévski, "O dom" (em russo, "Dar", 1937-1938), no qual lhe dedicou um capítulo satírico intitulado “A vida de Tchernichévski”.

Mas seria em Fiódor Dostoiévski que Tchernichévski e seu romance encontrariam o adversário literário e filosófico mais resoluto. Para Dostoiévski, radicais como Tchernichévski e teorias como o egoísmo racional, apenas justificavam “a tirania das habilidades racionais de cada indivíduo em detrimento de sua cultura intelectual, emocional e moral”.

Em resposta ao romance "O que fazer?", Dostoiévski publicaria o seu "Memórias do Subsolo", de 1864, além de outras obras com referências críticas e sarcásticas às concepções de Tchernichévski.

Portanto, de Dmítri Píssariev a Nikolai Leskov, de Gueórgui Plekhánov a Fiódor Dostoiévski, de Vladímir Lênin a Vladímir Nabókov, o romance "O que fazer?" não apenas suscitou grande polêmica em seu tempo e para além dele, como mobilizou em torno de si personagens históricos os mais diversos.

Apresentadas as várias interpretações e fins para os quais serviu o romance, bem como o pensamento de seu autor, restam poucos motivos para o “leitor perspicaz” – sem ironia – não o ler. É impossível ficar indiferente.

Camilo Domingues é mestre em história pela Universidade Federal Fluminense, com tese sobre Tchernichévski e a "intelliguêntsia" russa

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