Do sistema de Yalta à política da boa vontade

Ilustração: Iorsh

Ilustração: Iorsh

Em discurso à ONU, Vladímir Pútin evitou atritos diretos para falar de soluções. Entre os destaques, líder russo reforçou a necessidade de reforma das Nações Unidas, a importância de uma coalizão antiterrorista e até criticou as empreitadas imperialistas da ex-URSS.

No final de setembro, o presidente russo Vladímir Pútin se pronunciou perante a Assembleia Geral da ONU pela terceira vez na história. Desde seu discurso anterior, em 2005, as relações da Rússia com os EUA e a União Europeia se deterioraram significativamente. A incompreensão mútua das razões, objetivos e iniciativas é cada vez mais maior.

Quase todos os líderes que tinham feito o discurso antes de Pútin, como Barack Obama, Andrzej Duda, Xi Jinping, falaram da memória da Segunda Guerra Mundial. Foi uma homenagem ao aniversário de término do conflito e uma “ponte” para o presente sugerindo a importância de se prevenir novas guerras e outras tragédias humanas.

A razão principal para isso, no entanto, é a ineficácia da ONU, que precisa ser reformada. Porém, até agora, não há qualquer movimento que conduza ao sistema criado na Conferência de Yalta, mencionada por Pútin, que teria “salvado o mundo de grandes choques”, em suas palavras.

No que diz respeito à reforma das Nações Unidas, vários países falam sobre a possibilidade de privar os cinco membros permanentes do poder de veto. Mas fato é que muitos deles defendem essa iniciativa para privar a Rússia do seu direito de veto no contexto da crise na Ucrânia.

Recentemente, a França propôs sua renúncia voluntária “do privilégio do veto em casos que envolvem morte de um grande número de pessoas”, uma ideia que foi apoiada por pouco mais de um terço dos membros da ONU. Teoricamente, é possível reformar a organização com apoio de 33% dos membros da Assembleia Geral, mas será preciso obter o consentimento de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança.

Durante os primeiros dez anos de existência das Nações Unidas, foi a URSS que usou seu poder de veto com mais frequência. Já nos anos 1970 e 80, foram os Estados Unidos.

Se abstrairmos a crise ucraniana e o objetivo de “punir” Moscou, ainda não se sabe qual será o efeito dessa iniciativa. Afinal, a própria ameaça de vetar um incentivo força as grandes potências a procurar um compromisso – aliás, como Pútin reforçou em seu discurso, “a ideia da organização é justamente o desenvolvimento de compromissos”.

Inesperadamente, o presidente russo falou com tom de desaprovação sobre as tentativas da URSS de “impor experiências socialistas em outros países”, que levaram às consequências desastrosas. Logo, porém, tornou-se claro por que o político, que tinha chamado o colapso soviético de “maior catástrofe geopolítica do século 20”, fez essa declaração. Pútin acredita que a “exportação de revoluções” é hoje um análogo da prática soviética.

Pode-se admitir que a aversão às chamadas “revoluções coloridas” é uma obsessão do Kremlin, mas o direito internacional, que inclui os tratados da ONU, é ineficaz quando as revoltas apoiadas pelo exterior levam à destruição dos países e instituições estatais. Isso aconteceu após a chamada democratização da Líbia. A Síria está à beira de uma catástrofe semelhante.

Contrariando as expectativas, o presidente russo preferiu não discutir publicamente com Obama sobre a questão síria. Em vez disso, Pútin falou sobre a luta contra o terrorismo e propôs a criação de uma coligação antiterrorista “com base nos países muçulmanos”.

Já em relação à Ucrânia, o líder russo apenas repetiu a posição oficial de Moscou, apelando para o cumprimento dos acordos de Minsk. Também respondeu às declarações de Obama sobre a manutenção das sanções contra a Rússia, alegando que “medidas unilaterais, sem a aprovação da ONU, perseguem objetivos políticos e servem para eliminar concorrentes econômicos”.

“Provavelmente, a intenção é mostrar que as regras foram reescritas por um pequeno grupo de países. Essa abordagem levará ao desequilíbrio econômico global”, definiu o presidente russo.

Por fim, Pútin colocou uma ênfase especial sobre aspectos do contexto mundial, como a não interferência nos assuntos de Estados soberanos, o apoio aos governos legítimos, a superação da chamada “mentalidade de bloco”, a luta conjunta contra as ameaças comuns e, é claro, a busca por uma política da “boa vontade”, estabelecida pelos documentos da própria ONU.

 

Geórgui Bovt é cientista político e membro do Conselho para a Política Externa e de Defesa da Rússia

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