A história de um jornalista no outubro sangrento de 1993

Na noite de 25 de setembro, os corredores do Parlamento foram invadidos por centenas de elementos armados da UNR, que de imediato estabeleceram novas regras Foto: ITAR-TASS

Na noite de 25 de setembro, os corredores do Parlamento foram invadidos por centenas de elementos armados da UNR, que de imediato estabeleceram novas regras Foto: ITAR-TASS

“Com a aproximação do final trágico, crescia a agressividade contra os jornalistas. Ambas as partes nos encaravam não como observadores, mas como participantes ativos dos acontecimentos”, relata Grigori Nekhorochev, correspondente da BBC em Moscou de 1988 a 1995.

Grigóri Nekhorochev, correspondente da BBC em Moscou de 1988 a 1995, descreve o aconteceu na Casa Branca, em Moscou, e no Centro de Televisão de Ostánkino durante a tentativa de golpe de 1993:

Durante a noite de 24 para 25 de setembro de 1993, fiquei sentado num corredor da Casa Branca, encostado à parede, à espera do destino. Em ambas as pontas do corredor, a uma centena de passos, viam-se postos de combate improvisados, com jovens de 25 a 30 anos com roupas camufladas militares e armados de kalachnikovs. Eram da UNR (União Nacional Russa), de Aleksandr Barkachov [movimento ultranacionalista armado].

Fui detido por volta das 2h, quando achei por bem sair da Casa Branca e dirigir-me para o escritório da BBC, de onde transmitiria uma reportagem sobre o quarto dia de confrontos entre o Soviete Supremo da URSS e o presidente Iéltsin. Na altura, os celulares eram uma raridade e os telefones fixos do Soviete Supremo estavam desligados, o que me levava a sair de duas em duas ou de três em três horas para uma cabine da cidade ou para o nosso escritório, quando tinha necessidade de transmitir a Londres uma entrevista gravada concedida por um elemento do Parlamento rebelde.

Com a aproximação do final trágico, crescia a agressividade contra os jornalistas. Ambas as partes nos encaravam não como observadores, mas como participantes ativos dos acontecimentos. Até os simples mirones, que sempre abundaram em redor da Casa Branca, irradiavam a mesma agressividade, assim como os moradores das casas circundantes, certamente cansados do que acontecia debaixo das suas janelas.

Nos primeiros quatro dias não tive qualquer problema. Mas na noite de 25 de setembro, os corredores do Parlamento foram invadidos por centenas de elementos armados da UNR, que de imediato estabeleceram novas regras. “Um correspondente da BBC”, disse um deles, depois de ver a minha credencial emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Temos que te fuzilar, és um inimigo, por sinal bastante perigoso”.

Ninguém quis ouvir as minhas explicações. Fui revistado, tiraram-me a bolsa com o gravador e documentos e me mandaram sentar encostado a uma parede, numa zona vigiada por dois homens. Fiquei assim durante uma hora e meia, sob a luz de lâmpadas de emergência. A eletricidade também fora cortada. Além disso, desligaram a água, e os banheiros começavam a cheirar mal.

Por volta das 4h, regressou o militar que primeiro havia falado comigo: “Tenho ordens de Rutskói para te deixar ir embora de manhã. Tens sorte, por enquanto vais viver.” Levou-me para um gabinete, onde, sobre folhas espalhadas com o timbre do Parlamento, dormiam dois militares. Eu não tinha uma ponta de sono. O mesmo homem da UNR perguntou-me por que razão, sendo eu russo, trabalhava para o inimigo, para os ingleses. “Os estadunidenses e os ingleses são os maiores inimigos da Rússia. Há anos que tentam destruir o nosso secular modo de vida comunitário, porque têm medo da grande missão religiosa ortodoxa que temos no mundo. Procuram corromper-nos com pornografia e com a permissibilidade total. Costumas ver televisão? Agora só passam cenas porcas.”

Não tinha vontade de discutir, sentia-me assustado, por isso lhe disse que trabalhava como mero repórter, que as questões filosóficas me passavam ao lado, pois a minha função era contar o que via. O que me estava a acontecer era então frequente. Um correspondente da agência japonesa JJ Press, Danila Galperovitch, foi detido três vezes pelos militares da UNR.

Com a aproximação do final trágico, crescia a agressividade contra os jornalistas. Ambas as partes nos encaravam não como observadores, mas como participantes ativos dos acontecimentos. Até os simples mirones, que sempre abundaram em redor da Casa Branca, irradiavam a mesma agressividade, assim como os moradores das casas circundantes, certamente cansados do que acontecia debaixo das suas janelas.

Soube-se que era possível instalar-se, por pouco dinheiro, num dos apartamentos junto ao teatro das operações. Escritórios provisórios da CNN, ABC e CBC surgiram inesperadamente nas casas dos moscovitas situadas nos pisos superiores. É por isso que há tantas e tão excelentes fotografias do assalto ao edifício, que na altura abrigava muitos departamentos da Câmara Municipal de Moscou, e dos confrontos que se sucederam nas praças adjacentes à Casa Branca.

Na noite de 3 de outubro, a ação se transferiu para a Estação de Televisão Ostánkino, que se converteu no alvo dos partidários armados do Soviete Supremo. Entre a multidão encontravam-se mais de uma centena de jornalistas. Da cobertura da Centro de Televisão logo começaram a disparar combatentes das forças especiais. Lembro-me de ter visto, a 200 metros, Zurab Kodalachvili, stringer da agência Reuters, e Stefan Bentura, correspondente da AFP, tentando levantar do chão Pierre Celerier, correspondente da mesma agência. Quis aproximar-me deles, mas a multidão me impediu. Mais tarde, soube que Celerier fora ferido, atingido nas costas por sob o colete à prova de bala. Na mesma altura foram mortos Rory Peck, stringer da companhia alemã ARD, e Yvan Skopan, jornalista do canal televisivo francês TF1. Peck dava-se bem com toda a gente, todos gostavam dele. Com a sua inseparável câmera, esteve em quase todos os pontos quentes da antiga URSS.

Após uma noite sem dormir, a maior parte dos jornalistas regressou à Casa Branca: correu a informação de que o assalto seria desencadeado ao amanhecer. Realmente, às 6h, uma coluna de tanques vinda da avenida Kutúzovski aproximou-se e começou a abrir fogo. Por volta do meio-dia, depois de transmitir uma dezena de reportagens das cabines telefônicas, eu caía de cansaço. Lembrei-me, subitamente, que um norte-americano conhecido tinha um apartamento alugado no último piso de um dos prédios altos da Nova Arbat. Em sua casa encontrei à janela Paul Klebnikov, correspondente da “Forbes”, sentado num cadeirão. Olhamos para a rua, como se esta fosse palco de um teatro, durante horas, em silêncio. Khlebnikov tomava notas de vez em quando, enquanto eu ia à cozinha de meia em meia hora para transmitir pelo telefone. Tínhamos ali, como na palma da mão, a Casa Branca.

Por volta das 3h, a Nova Arbat se encheu de carros de combate. Nos telhados, aqui e ali, começaram a aparecer espingardas e metralhadoras. As metralhadoras dos blindados puseram-se a varrer os telhados. De repente, ouvimos responder também com fogo do nosso telhado. Saímos de repelão para o corredor e nos atiramos no chão. Neste momento, uma bala entrou pela janela do corredor, fez ricochete no teto e bateu no chão. Um fragmento desta me feriu por cima do sobrolho. Senti sangue a correr. A porta vizinha abriu-se, convidaram-nos a entrar. Um casal e uma criança de uns sete anos estavam sentados no corredor, a parte mais segura da casa. Quando nos juntamos todos no corredor, o garoto viu o sangue e começou a gritar: “Mataram o homem, mãe! Mataram o homem!” Ocorreu-me dizer automaticamente: “Nada disso, estava bêbado, tropecei e caí.” A criança sorriu.

Klebnikov exclamou: “Eis o fim do poder soviético.” Filho de um emigrante russo, descendente do dezembrista Puchin, regressou anos depois à Rússia para ser redator executivo da “Forbes” russa. Mataram-no na nova Rússia, não soviética.

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