Guinada transatlântica de Trump choca a Europa e confunde o Kremlin

Abandono de sanções e reconhecimento da Crimeia por Trump podem inverter dinâmica de relações

Abandono de sanções e reconhecimento da Crimeia por Trump podem inverter dinâmica de relações

Reuters
O presidente eleito dos EUA, que assumirá o cargo nesta sexta-feira (20), esboçou suas prioridades de política externa para a impressa europeia sugerindo que poderia abandonar as sanções anti-Rússia como parte de um acordo de armas nucleares com Moscou. Mas a que preço tal postura seria assumida?

Seis dias antes do 45º presidente norte-americano assumir o mandato, uma entrevista publicada simultaneamente pelos veículos alemão “Bild” e britânico “The Times” sinaliza que Donald Trump está considerando reformular drasticamente as relações tanto com seus aliados europeus como com a Rússia.

Durante a conversa de uma hora, Trump deu as boas-vindas ao Brexit, criticou a União Europeia como “basicamente um veículo para a Alemanha” e afirmou que apenas cinco países contribuíram com “o que deveriam”  no orçamento da Otan. O presidente eleito dos EUA ainda qualificou a aliança como “obsoleta” e descartou qualquer apoio a Angel Merkel na tentativa de reeleição como chanceler.

“A Europa reage à entrevista de Trump com o espanto”, resumiu o canal alemão Deutsche Welle ao descrever a perplexidade nas capitais de UE.

Em Moscou, no entanto, parece haver discordância e até ansiedade entre os líderes russos. Afinal, o que explica essa sensação de desconforto?

Mais perguntas que respostas

Moscou irá provavelmente enfrentar negociações conforme o princípio romano do “do ut des” (“Eu dou aquilo [que] você pode dar”). Washington, como sugeriu Trump, poderia suspender as sanções financeiras, econômicas e diplomáticas contra empresas e funcionários russos sob uma condição importante – se os dois países chegaram a um acordo de controle de armas nucleares.

A redução dos arsenais de armas de destruição em massa não é, porém, a questão em jogo. Trata-se de um sinal positivo da ânsia do futuro presidente dos Estados Unidos de lidar com a recente e preocupante deterioração da estabilidade estratégica.

A linha vermelha já foi cruzada. Na véspera do resultado final das eleições americanas, quando Hillary Clinton parecia estar ganhando, o comando militar russo analisou a prontidão dos abrigos nucleares do país – o que não se fazia há décadas.

A questão primordial está na estratégia de Trump para administrar a crise social e política na Ucrânia, bem como na legitimização do referendo de março de 2014 na Crimeia, no qual mais de 96% dos locais apoiaram sua reanexação à Rússia.

Até agora, o discurso de Trump levanta mais perguntas do que fornece respostas.

Nas trincheiras ideológicas

O candidato republicano demonstrou desde o início opiniões divergentes sobre a Rússia e os tumultos na Ucrânia, posicionando-o nas trincheiras ideológicas como o opositor da política linha-dura do governo Obama em relação a Moscou.

Em julho de 2016, em uma entrevista no programa “This Week”, do canal americano ABC News, Trump deixou claro que não compartilhava as opiniões do presidente Obama sobre a crise na Ucrânia e discordava da forma como a “anexação” da Crimeia foi rotulada nos meios de comunicação e por políticos ocidentais.

“O povo da Crimeia, pelo que ouvi, prefere estar com a Rússia a onde estavam”, disse Trump, antes de afirmar que “a Ucrânia é uma bagunça” e culpar o governo Obama.

Em agosto passado, o candidato republicano foi considerado por entrevistadores e meios de comunicação americanos (quase todos pró-Clinton) como o “pau mandado” de Pútin, mas fez uma declaração contundente sobre a luta de poder e a guerra civil na Ucrânia: “Esse é um problema que afeta a Europa muito mais do que nos afeta”.

Na recente entrevista ao “Bild” e ao “The Times”, Trump soou mais conciliador, dizendo que “a Rússia está sofrendo muito por causa de sanções, mas acho que pode acontecer algo que muitas pessoas vão se beneficiar". Consistência? Parece que sim.

Obstáculos ocultos

Em contraste, o novo secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, falou em alto e bom som ao se dirigir à comissão de relações internacionais do Senado americano. Segundo ele, a Rússia não tem direitos legais sobre a Crimeia, e o atual status poderia ser revertido como parte de “acordos amplos” e “aceitáveis para o povo ucraniano”.

Esta pré-condição adicional de Tillerson anula as chances de o status da Crimeia, que já integra em pleno direito a Rússia, ser legitimada no Ocidente. Por enquanto.

A principal razão é que a atual liderança política em Kiev jamais realizaria um referendo nacional perguntando aos ucranianos se estão mesmo dispostos a aceitar a Crimeia como parte da Rússia.

Assim, novamente, espera-se que o novo presidente dos EUA não seja o tipo de político que sairá distribuindo biscoitos de graça. Deve haver um preço embutido.

Troca, mas a que custo?

Recentemente, o mestre veterano em negócios diplomáticos Henry Kissinger recomendou uma mudança de tom. Segundo o “The Independent”, de Londres, em troca de aceitar que a Crimeia é, de fato, parte da Rússia, os Estados Unidos exigiriam que Moscou “deixasse de enviar tropas e suprimentos militares a rebeldes no leste da Ucrânia que estiveram lutando contra o governo de Kiev”.

O plano de Kissinger, porém, indica que não existe uma compreensão verdadeira das principais causas dos tumultos na Ucrânia; ele superestima a influência de Moscou sobre as duas autoproclamadas repúblicas. As pessoas que se rebelaram contra as autoridades de Kiev não são separatistas pró-russos. Pelo contrário, são dissidentes pró-Ucrânia que desafiam um golpe de Estado no país que consideram seu.

As populações das regiões de Donetsk e Lugansk basicamente exigem direitos democráticos para eleger seu próprio governo, que não haja interferência estrangeira e que o premiê da Ucrânia não seja nomeado pelo Departamento de Estado dos EUA.

O bombardeio a aldeias e cidades nessas duas regiões transformaram civis em vítimas. Uma geração de “filhos da guerra” surgiu na Ucrânia. Não será fácil para Moscou convencer os locais a aceitarem acordos que ameacem sua própria existência.

Há também muita especulação sobre qual seria o grande acordo da (pouco clara) “doutrina de Trump” que visa a reduzir arsenais nucleares. Alguns especialistas sugerem que a nova ordem mundial será construída às custas da China.

Em entrevista ao jornal “Rossiyskaya Gazeta”, o secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patruchev, saudou a oportunidade de melhorar as relações bilaterais com os EUA, mas disse não esperar que isso aconteça rapidamente e também não aposta numa rápida suspensão das sanções. É por isso que Moscou prefere esperar as atitudes da nova administração dos EUA até que algo além de propostas vagas seja colocado na mesa de negociações.

Vladímir Mikheev é um jornalista moscovita. Foi repórter do jornal Izvêstia e colaborador da BBC.

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