Bem-vindos a um mundo multipolar

Eventos recentes forçam Europa a repensar atitude em relação a Rússia

Eventos recentes forçam Europa a repensar atitude em relação a Rússia

Reuters
Por que é hora de a Rússia oferecer mais do que uma ‘visão do mundo’.

Pode ser cedo para resumir os eventos internacionais do ano corrente, mas tudo que devia acontecer já aconteceu, e as principais consequências são evidentes. O sistema global está entrando em uma nova fase de desenvolvimento.

Nem o resultado do Brexit, em julho, nem a vitória de Donald Trump na eleição presidencial EUA, em novembro, foram fatores por trás dessas mudanças; ambos os eventos foram apenas sintomas delas, embora bastante ilustrativos.

O modelo de uma ordem mundial aberta e abrangente, com os Estados Unidos e seus aliados no comando, está se tornando coisa do passado. As classes dominantes dos principais países estão sendo forçadas por seus próprios seus cidadãos a desviar a atenção para os assuntos internos. Os planos de expansão externa, sejam políticos, econômicos ou ideológicos, estão sendo colocados em segundo plano.

É pouco provável que essa expansão cesse por completo. No entanto, o empurrão pós-Guerra Fria na direção do domínio global foi tão abrupto e tão acelerado para os padrões históricos, que resultou na atual retração.

Ocidente como ponto de referência

Para a Rússia, isso também significa o início de uma nova fase. Desde a desintegração da União Soviética, a Rússia considera o Ocidente como ponto de referência e sente a necessidade de adequar, de certo modo, sua atitude em relação ao modelo ocidental de ordem mundial. À parte da situação geopolítica, a Europa era vista como elemento crucial do desenvolvimento russo, um ponto de atração ou de repulsão.

Logo após a Guerra Fria, sugeriu-se até que a Rússia poderia se juntar às instituições políticas ocidentais, as mesmas instituições que acabaram determinando toda a ordem mundial nos 20 anos seguintes. Esta foi a principal decisão estratégica tomada no início da década de 1990.

Desde a segunda metade dos anos 2000, Moscou repele com cada vez mais ênfase o desejo ocidental de propagar o modelo que considera correto e necessário.

Em 2010, a situação começou a se assemelhar a uma Guerra Fria, e este ano surgiram indícios preocupantes de um possível confronto direto. Foi então que as reviravoltas já citadas se desenvolveram no Ocidente.

O retorno da lógica da dissuasão

Washington parece estar ressuscitando agora a lógica da dissuasão. Há uma teoria difundida de que, quando Trump menciona seu objetivo de “Make America Great Again” (tornar os EUA grandioso de novo), ele está, de fato, pensando lá nos anos 50, um período marcado por recuperação econômica, pela autoconfiança nacional após a vitoriosa guerra e pela mera ausência do conceito de politicamente correto.

Também foi o período em que a dissuasão nuclear e os princípios da estabilidade estratégica (as regras da confrontação nuclear) foram cuidadosamente definidos.

A Europa está pensando profundamente sobre qual atitude escolher em relação à Rússia, e esta questão pode se tornar um sério fator na evolução interna do Velho Mundo ao longo dos próximos meses. A ideia central das décadas de 1990 e 2000 de que a Rússia deveria se integrar à Grande Europa parece ter sido riscada da agenda.

Por outro lado, há dois fatores ligados a essa lógica ajudam Moscou a alcançar vitórias. Primeiro, o receio de muitos países não ocidentais de serem apanhados na mira da política norte-americana tem consolidado o sentimento antiocidental. Segundo, tanto os EUA quanto a Europa cometeram erros imprudentes, principalmente por razões ideológicas, e a Rússia tem habilmente se aproveitado desses deslizes.

Chegada a um mundo multipolar

A diminuição da atividade dos Estados Unidos e a crise na Europa estão enfim dando à Rússia a chance de tomar medidas independentes que não serão vistas como reações aos estímulos ocidentais.

O tão cobiçado mundo multipolar está finalmente se aproximando; agora a questão é como ele será. A Rússia pode optar por continuar desafiando a hegemonia americana e a influência ocidental, mas nenhum desses fatores vai desaparecer completamente.

Novas ideias sociais, tecnológicas e geopolíticas serão cada vez mais necessárias em todo o mundo. Moscou vem negligenciando esta oportunidade, sobretudo desde os últimos anos da União Soviética. Havia sempre outras coisas para se preocupar, e também parecia não haver demanda externa.

É a hora de começar a oferecer ao mundo algo de nossa própria concepção; algo que, ao invés de afastar a pressão externa ou defender nossos interesses, incorpore a noção de bem comum.

Presos no frenesi da realpolitik (política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas), há muito tempo nos esquecemos que, no fim das contas, a história é feita por aqueles que confiam em tais noções. E, por sinal, também contribui para proteger os próprios interesses.

Com o jornal on-line Gazeta.ru

Fiódor Lukianov é editor-chefe da revista Russia in Global Affairs e presidente do Conselho de Política Externa e de Defesa, grupo independente de reflexão com sede em Moscou.

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