Pedido de desculpas de Erdogan a Moscou: sincero ou não?

AP
Atitude de presidente turco em relação a abate de avião russo pode não ser tão sincera quanto aparenta. Mesmo assim, resolve o problema.

A surpreendente notícia do pedido de desculpas do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, para a Rússia se tornou o primeiro passo para a normalização das relações Ancara-Moscou e, como tal, estará, sem dúvida, sujeita a várias interpretações e especulações que irão obscurecer e distorcer seu sentido.

O presidente ucraniano, Petrô Porochenko, já tentou botar fogo na situação quando disse ter conversado com Erdogan em 27 de junho, sob iniciativa do presidente turco, e este teria “meramente expressado condolências à família do piloto morto”.

Porochenko e intrigas

Porochenko foi o primeiro a tentar negar a versão oficial de desculpas de Erdogan ao governo russo. Sua reação é perfeitamente compreensível – há muito pouco tempo, Kiev e Ancara estavam falando em uníssono sobre “uma ameaça russa”.

É muito provável que seja difícil para Porochenko aceitar psicologicamente a ideia de que a união entre ele e Erdogan caiu por terra, ou está prestes a desmoronar, e que a Turquia seguirá, então, pelo caminho da normalização das relações com a Rússia.

No entanto, além da reação totalmente previsível de Porochenko, existem agora novos e mais graves motivos para duvidar de que Erdogan esteja realmente pronto a assumir todas as promessas que Moscou tem estado à espera nos últimos sete meses.

Menos de um dia após o pedido de desculpas de Erdogan ter parado nas manchetes mundiais, o seu braço direito, o primeiro-ministro turco Binali Yildirim, deixou claro que Ancara não correrá para atender às exigências russas em termos de compensação.

“Nós não dissemos nada sobre compensação, nós apenas expressamos nossa tristeza. Estamos prosseguindo com o julgamento dos suspeitas de matar o piloto”, disse Yildirim, em entrevista ao canal de televisão turco NTV. Um dia antes, o discurso tinha sido completamente diferente: “Se necessário, pagaremos uma compensação.”

Afinal, o que Erdogan realmente escreveu para o presidente russo, Vladímir Pútin, e como o significado de sua mensagem pode ser interpretado à luz de todos esses fatos e declarações contraditórias? Vejamos a questão do ponto de vista da tradução. A expressão turca que Erdogan utilizou (“kusura bakmasinlar”) pode ser traduzida como “Perdoe-me”, “Sinto muito” ou “Não fique com raiva”. Em sua carta, a expressão é usada uma única vez – na frase dirigida à família do piloto russo morto Oleg Pechkov.

Além disso, ao abordar os familiares do piloto, Erdogan implica que a vê como “uma família turca”, apresentando-se, assim, como um patriarca oriental sábio que é capaz de sentir a dor do outro e expressar palavras de conforto.

Desculpa a quem?

Duas conclusões podem ser tiradas ao observar atentamente a mensagem. Em primeiro lugar, o pedido de desculpas de Erdogan é condicional, ou pelo menos um tanto indiferente, já que foi destinado à família de Pechkov, e não ao governo russo. Em segundo lugar, Ankara não admitiu sua culpa na derrubada do avião russo.

A tentativa de dar ênfase à tragédia humana confere ao assunto outra dimensão: a Turquia está basicamente afirmando que o incidente ocorreu e que isso não estava em seus planos, mas, devido à morte de uma pessoa, o país lamenta o acontecido e está agora pronto para pedir desculpas à família da vítima e punir aqueles que a mataram.

Tudo isso significa que, durante um certo período de tempo, a notícia sobre o ‘pedido de desculpas de Erdogan’ terá uma vida paralela em duas esferas de informação separadas – russa e turca. As discrepâncias serão, assim, inevitáveis.

No entanto, mais importante ainda será se Moscou e Ancara vão querer enfatizar essas discrepâncias ou, pelo contrário, tentarão dar um ao outro a oportunidade de manter as aparências concordando que os primeiros passos para a normalização das relações já foram tomados.

Não importa se a atitude de Erdogan foi condicional, o que importa é que o Kremlin não rejeitou o pedido de desculpas, quebrando, assim, o gelo entre os países.

Diplomacia à prova

Em geral, pedir desculpas oficiais em nível internacional é uma das mais delicadas e desafiadoras questões diplomáticas. O preço a pagar é excepcionalmente elevado – o prestígio de um governo está em jogo. Cada palavra e gesto que são percebidos como um pedido de desculpas são vistos, em sentido figurado, sob um microscópio.

Por exemplo, há 15 anos, em abril de 2001, após um avião de reconhecimento norte-americano violar o espaço aéreo da China e fazer um pouso forçado na ilha de Hainan, Pequim exigiu que Washington se desculpasse oficialmente. No entanto, os Estados Unidos se recusaram.

A situação ficou tão crítica que o mundo começou a falar sobre um possível conflito aberto. Após intensas negociações, os EUA decidiram, enfim, emitir uma declaração enigmática: “Aceitem o nosso profundo tsao [pesar]”. Cada lado, porém, interpretou a declaração de sua própria maneira: um pedido de desculpas ou um lamento.

E a lista de exemplos é interminável. Na recente visita do presidente dos EUA, Barack Obama, ao Japão, durante a cúpula do G7, o líder norte-americano não se desculpou oficialmente pelos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, há 70 anos, mas participou da cerimônia de colocação de coroa de flores e expressou palavras de compaixão. Mais cedo, o próprio Japão havia se recusado a se desculpar oficialmente à Coreia do Sul por seus crimes da Segunda Guerra Mundial.

No entanto, as relações entre esses países não pode ser descrita como essencialmente conflituosa ou disfuncional. Por meio de tentativas e erros, as potências mundiais aprenderam a não tornar suas relações reféns de questões nas quais é impossível sacrificar princípios. E todo mundo acaba ficando quites.

Serguêi Strokan é jornalista do "Kommersant" e especialista em assuntos internacionais. 

Publicado originalmente pelo jornal Kommersant

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