Alô-alô, presidente!

Em 2015, Pútin respondeu 80 perguntas em 3,5 horas de transmissão

Em 2015, Pútin respondeu 80 perguntas em 3,5 horas de transmissão

De imperadores a Pútin, passando por burocratas soviéticos, Rússia sempre teve linha direta da população comum com o poder, para pedidos.

Ainda são poucos os países no mundo onde a comunicação do líder de Estado em forma de perguntas e respostas tenha se torna um prática regular. Sim, e com duração de muitas horas. Na Rússia também ninguém o fez tanto quanto Vladímir Pútin.

Sua primeira "linha direta" com o povo se estabeleceu em dezembro de 2001. Desde então, ela acontece todo ano, com a singela diferença de que foi alterada do inverno para a primavera - quando já está menos frio e as pessoas que querem lhe fazer perguntas ao vivo em transmissões televisionadas não precisam esperar por horas rodeadas por neve.

Em 2015, o presidente respondeu 80 perguntas em 3,5 horas. Foram enviadas, sobretudo previamente, mais de 3 milhões de questões. Isso significa que as pessoas escrevem, ligam e enviam videomensagens a Pútin não tanto na esperança de receber resposta na sua própria pergunta, mas de alguma forma em cumplicidade com o poder, como manifestando a crença de que o governador supremo sabe de tudo, ouve tudo e, no final das contas, resolve tudo.

Alguns acreditam que Pútin copiou a prática da "linha direta com o povo" do então presidente venezuelano, Hugo Chavez, com sua transmissão semanal "Alô, presidente". Na realidade, essa forma de comunicação do líder com os indivíduos está profundamente enraizada na história da Rússia.

O ponto é que, em determinados momentos, o líder se comunica com o povo como de igual para igual. Sem boiardos, como eram chamados os membros da aristocracia russa sob os tsares, ou funcionários públicos fazendo o meio de campo, e que, de acordo com a tradição russa, deturpam as reais intenções e a política do poder superior. Apenas o líder do país carrega, de acordo com tal noção, alguma alta justeza.

Na história dos primórdios da Rússia, o Grão-Duque - e depois o tsar - eram buscados pelos chamados "reclamantes" (em russo, "jalobnitsi"). Sob Ivan, o Terrível, na centralização do poder, surge um ato mais compreensível, a "humilde súplica" ("tchelobitnaia"). Os suplicantes agiam por meio de uma ordem especial, de um órgão análogo às atuais assessorias de imprensa presidenciais, que podia ser também um pedido, notificação de busca ou outro documento divulgados sem mediação pelo tsar.

Em suma, então qualquer comunicação nos órgãos governamentais eram comunicações com o soberano. É como se, agora, uma comunicação dos fazendeiros por subsídio no Ministério da Agricultura começasse com o vocativo "Mais benevolente soberano Vladímir Vladímirovitch [Pútin]". O governo e a lei estavam personificados em uma só pessoa: o tsar e reverendo. Ele era sempre bom na concepção das massas, ainda que fosse "Terrível".

As "humildes súplicas" que diziam respeito a particulares foram mantidas até o século 18. Depois, começou-se a usar cada vez mais a palavra "pedido", e, mais tarde, surgia ainda a "petição".

Mas a essência disso tudo não mudou. Há leis e há tribunais. Mas, acima desses e dos chamados "agentes da lei" - boiares ladrões ou funcionários públicos corruptos -, há o tribunal superior e a justiça suprema. É preciso se referir também a essa com pedidos, quando quaisquer outras maneira de alcançar a verdade se esgotam ou não se acredita nelas.

A busca pelo governo com pedidos foi praticada também após o estabelecimento do governo soviético. A inteligência popular sugeria a existência de meios mais eficazes que o conflito aberto com o governo (até mesmo nos tribunais, isso sem falar sobre revoltas abertas nas ruas), que era o caminho do pedido.

E o governo, como podia, apoiava esse formato: por meio do envio de cartas pessoais e até coletivas era possível entrar em acordo com ele, de uma forma ou de outra, e alcançar uma resolução positiva para muitas questões. Ou seja, isso tudo funcionava.

No plano individual, era comum fazer pedidos sobre as coisas mais diversas (essas questões, até hoje, ecoam nas linhas diretas, são enviadas ao presidente no curso da preparação da linha e depois são trabalhadas por sua administração, que consegue, de uma forma ou de outra, proferir respostas a absolutamente todas elas).

São questões de como se partilhar um apartamento, pedidos de ajuda com tratamentos médicos e medicamentos, de libertação de familiares da prisão, dar um jeito no chefe mandão, colocar ordem em determinados lugares etc.

Eram escritas não apenas a Stálin, Khruschov ou Brejnev, mas também para os comitês regionais do partido, para deputados, e também para os jornais. Frequentemente eram as cartas aos jornais que se mostravam como modos extremamente efetivos de mudar o curso das coisas, alcançar a justiça e resolver questões.

Agora, a autoridade da imprensa, claro, caiu consideravelmente. Como a de muitos outros institutos sociais e políticos. Cresce apenas a autoridade do presidente. Como instituto e como pessoa. E ele compensará também mais para frente a insuficiente efetividade do trabalho de todos os outros institutos sociais e governamentais.

Gueórgui Bovt é cientista político e membro do Conselho para Política Externa e de Defesa.

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