Os prós e os contras de Trump para a Rússia

Elogios a Pútin não devem ser subestimados, diz analista Ilustração: Dmítri Dívin

Elogios a Pútin não devem ser subestimados, diz analista Ilustração: Dmítri Dívin

O observador Vladímir Mikheev está acompanhando a campanha eleitoral nos EUA com apreensão e otimismo cauteloso. Entre as figuras na corrida presidencial, Mikheev vê Donald Trump como alternativa, já que sua postura em relação à Rússia e à Otan fazem dele uma proposta atraente para a Rússia - porém, há também algumas ressalvas.

Para um país como os Estados Unidos, com seus estoques de armas nucleares e uma dívida que soma os US$ 19 trilhões, o suficiente para inviabilizar as finanças globais se a bolha estourar, a escolha de quem vai liderar a nação é de importância vital para todos.

Dos candidatos que hoje procuram garantir a indicação do seu partido para a presidência dos EUA, não há ninguém que cause mais discórdia e controvérsia do que Donald Trump.

Mas, polêmicas à parte, quais motivos haveriam para o bilionário norte-americano ter a oportunidade de ajustar sua terra natal aos tempos modernos, sem deixar de levar em conta os interesses nacionais?

Raiva por raiva

Trump surgiu do nada como uma verdadeira alternativa para os principais candidatos que estão oferecendo, mais ou menos, as mesmas promessas de sustentar a suposta “excepcionalidade dos EUA” e continuam promovendo o sonho americano mesmo nas atuais circunstâncias financeiras nada satisfatórias.

Isso não contribui em nada para a correção das políticas interna e externa que causaram “tanta raiva fora dos Estados Unidos”, como descreveram David Maraniss e Robert Samuels no “The Washington Post” em 17 de março.

“Raiva de Wall Street. Raiva de muçulmanos. Raiva de acordos comerciais. Raiva de Washington. Raiva de policiais atirando em jovens negros. Raiva do presidente Obama. Raiva de obstrucionistas republicanos. Raiva do politicamente correto. Raiva em relação à água envenenada em Flint, Michigan. Raiva de deportações. Raiva de imigrantes em situação irregular. Raiva de uma carreira que não correu como o esperado. Raiva de uma falta de rumo na vida…Raiva específica e indefinida, e até mesmo raiva da raiva”, escreveram.

Trump, como um ‘dissidente’ excêntrico, estaria, assim, se posicionando, seja com justificativas sólidas ou não, como a solução, ou a receita para curar a raiva. Este é o ponto central de seu apelo. Seus índices de popularidade simplesmente refletem a busca de um messias com os pés no chão.

Nem isolacionista nem intervencionista

Os pronunciamentos de Trump sobre a sua capacidade de lidar com Pútin e estabelecer um diálogo significativo com o presidente russo soam estranhamente familiares, assim como a suposta intenção inicial de Barack Obama de promover um “reset” nas relações com a Rússia.

No entanto, eu reduziria as expectativas de uma retomada das relações durante um possível mandato de Trump. Afinal, como presidente, ele não teria o poder automático de moldar a política externa e harmonizá-la com todos os centros de poder existentes dentro do contexto político e empresarial nos Estados Unidos. Eu não contaria com Trump como o arquiteto de uma nova “détente”.

Por outro lado, a percepção de Trump sobre a Otan, como um empreendimento caro e com pouco benefício para os EUA (“Nós certamente não podemos mais nos dar ao luxo de fazer isso”, disse ele, recentemente), é uma mudança de tom bastante bem-vinda. Ainda assim, uma vez no cargo, não se sabe o quanto ele seria capaz de diminuir o envolvimento e as contribuições financeiras dos EUA para a aliança ocidental.

O mais provável é que, com Trump na qualidade de chefe de Estado, as relações com a Otan possam se tornar mais previsíveis. “Por que somos nós que estamos sempre conduzindo, potencialmente, à Terceira Guerra Mundial com a Rússia?”, perguntou Trump, abordando explicitamente a questão com os aliados europeus de Washington. Boa pergunta.

Vivendo no antigo “Império do mal”, como a Rússia foi certa vez definida por Ronald Reagan, estou ciente de que meus compatriotas estão apreensivos em relação à máquina militar ocidental, que tem se expandido gradualmente rumo ao Oriente e se aproximado cada vez mais das fronteiras da Rússia ao longo das últimas décadas. A reavaliação do valor da aliança militar transatlântica feita por Trump é um passo mais próximo do que muitos russos gostariam de ouvir: a confissão de que a Otan é uma relíquia da Guerra Fria.

Heresias do sr. Iconoclasta

O universo político se refere tanto à formulação de políticas em si, como às percepções. A personalidade do principal dirigente da Casa Branca se relaciona diretamente com o que as outras nações esperam dele (ou dela) e à prontidão dos demais de se envolver com o governo dos EUA. Trump permanece, até agora, um enigma norte-americano. Por quê?

O empresário é parte integrante da chamada “classe privilegiada”. Os itens de ouro 24 quilates no banheiro de seu avião pessoal - apelidado de “Trump Force One” - apenas confirmam isso. No entanto, ele vem se aproveitando do ressentimento popular em relação às elites dominantes. E isso faz dele um populista, talvez, no bom sentido da palavra.

Mas Trump é um herege perigoso para os padrões russos. Ele propõe a proibição temporária da entrada de muçulmanos nos EUA e ataca descaradamente os mexicanos e outros imigrantes latino-americanos.

Esta posição abertamente racista e intolerante nunca seriam aceitas pelos russos. Com uma população étnica e multireligiosa, Rússia é uma nação diversa e não apenas cristã ou muçulmana. Não permitimos a intolerância nem mesmo abuso verbal desse tipo. O fato de que os grupos de supremacia branca apoiarem Trump também não é menos preocupante.

Qual a verdadeira alternativa?

Considerando todas as características preocupantes de Trump e suas políticas abrasivas, a pergunta, então, seria: “Trump é um de nós?”. Parece uma questão boba, mas não totalmente inadequada.

Basta lembrar da coluna do conservador Pat Buchanan intitulada “Pútin é um de nós?”, de dezembro de 2013, que levantou suspeitas de que ele fosse um fã secreto do presidente russo. Mais tarde, o observador acabou voltando atrás e retomou seu antigo posicionamento. No entanto, as dúvidas de Buchanan sobre Pútin não eram infundados.

Trump não é, definitivamente, “um de nós”, e seria, provavelmente, osso duro de roer de lidar com ele caso ele venha a se tornar o número um em Washington.

No entanto, ao ler as reações de diversos usuários de internet aos artigos sobre os candidatos para as próximas eleições presidenciais, fica claro que muitos norte-americanos estão cansados da política imposta pelos clãs Bush e Clinton ao longo dos últimos 25 anos.

Perestroika a la Trump

Ao avaliar todos os pontos citados, conclui-se, portanto, que Donald Trump pode ser, sim, a alternativa. O senso comum demonstra que nem todas as alternativas oferecem um futuro melhor do que os regimes anteriores com a velha guarda no comando.

No entanto, há uma boa chance de que os Estados Unidos possam mudar para melhor sob o comando do empresário bilionário, com Trump atraindo para os órgãos governamentais profissionais sem ligações com os “missionários” do lado democrático ou os “neoconservadores” do setor republicano.

A questão, porém, é se os norte-americanos estão ou não preparados para embarcar em uma versão própria da perestroika, cujos resultados finais estariam longe de qualquer conclusão precipitada.

Vladímir Mikheev é um jornalista moscovita. Foi repórter do jornal Izvêstia e colaborador da BBC.

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