Obstinada independência

Varlam Chalamov

Varlam Chalamov

A.Less/TASS
Destino do escritor Varlam Chalamov, que era contrário a Stálin, mas favorável ao socialismo, surpreende mesmo diante do trágico cenário do século em que viveu. Primeiro volume no Brasil de "Contos de Kolimá" sai pela editora 34.

As desventuras do escritor soviético Varlam Chalamov se iniciaram com a perseguição ao pai, que era um padre em Vólogda, no norte da porção ocidental russa. Tampouco a famigerada "origem social" serviu como pontapé para a carreira do "jovem de individualidade brilhantemente expressa, enérgico, consciente, de grandes ambições, ávido por conhecimento", como era definido nos boletins escolares.

Na biografia de Chalamov escrita pelo pesquisador Valéri Essipov, desenha-se mais minuciosamente o ambiente em que o escritor inicia a vida, na virada dos anos 1920, com "o último suspiro da nova democracia soviética" e a ebulição dos acontecimentos culturais.

No curto período como universitário em Moscou, ele reuniu, como uma abelha, "o último néctar do verão que findava", como define melancolicamente seu biógrafo, ora na redação da revista literária "Nôvi Lef" (que tinha Maiakóvski como editor-chefe e Rôdtchenko e Eisenstein entre os colaboradores e organizadores) ora na da "Krásnaia Nov", ou ainda em teatros diversos. Muitos anos depois, o escritor ainda lembra-se da "voz surpreendente" de Babánova, que "soava como sinos prata".

"Queríamos não apenas ler poemas. Queríamos agir, viver", escreveu Chalamov. O escritor de então leva o biógrafo a lembrar uma característica famosa da personagem de Dostoiévski Aliosha (Aleksêi) Karamazov: "Foi um jovem honesto por natureza, que exigia a verdade, buscava-a e acreditava nela, e, acreditando, exigia a participação imediata nela com toda a força de sua alma..."

É de se admirar que ele logo tenha estampado uma capa, trabalhando em uma tipografia clandestina que publicava o "Testamento" silenciado de Lênin e, por muitas décadas, recebendo a marca de elemento perigoso à sociedade e trotskista?

Ao primeiro campo de trabalhos forçados, depois de 16 anos de intervalo, segue-se outro, em 1937, já nos Urais - em Kolimá, onde o intransigente preso ganha mais uma pena, quando fica arruinado...

Fonte: Divulgação

"A história conhecida...", dirá o leitor experimentado, provavelmente em meio a um bocejo. "Mas depois, felizmente, apareceram pessoas que ajudavam os pobres de alguma maneira. Nesse caso, colocando-o no hospital e, depois, no curso de enfermagem."

Mas não ficará confuso até aquele sabichão em "literatura de campo de trabalhos forçados" ao saber que, até depois de sua libertação, em 1951, Chalamov nunca se livrou dos "olhos que veem tudo... ouvidos que escutam tudo" dos famosos órgãos estatais? Mesmo nos "liberais" anos 1980 de Brejnev, até a morte em um asilo para portadores de doenças mentais (onde ele, retomando os hábitos do campo de trabalhos, escondia comida debaixo do colchão),  nos funerais, como corvos, aglomeravam-se carros de modelo "Volga" com observadores...

E é isso o que assombra ainda mais, e já de outra forma, não apenas com infinito pesar e piedade. Ao que parece, quase completamente golpeado, destruído e humilhado de todos os modos - perseguido, sem teto, sem dinheiro, com a doença avançando -, Chalamov se mostrou indomável, um verdadeiro "Hércules da alma", mostrando em seus "Contos de Kolimá" a verdade inclemente não apenas sobre a existência no campo, mas sobre o que, sob o extraordinário peso da prensa, acontece com o próprio homem: "Quem ele poderia se tornar, como o pesquisador formula esse homem orgulhoso... no mundo onde todos os conceito estão deslocados".

Chalamov versus Soljenítsin

Uma linha que diferencia Chalamov de outros escritores é sua sólida certeza de que "Stálin e o governo soviético não são a mesma coisa" somada à fidelidade ao ideais do socialismo. Seu biógrafo Essipov nota o quão rara é a posição desse autor também na atualidade.

"Ele é categoricamente contrário à concepção conservadora que ganhava popularidade então entre os intelectuais de que a revolução russa seria 'o erro histórico de 1917' e a nostalgia do 'passado maravilhoso pré-revolucionário'", escreve.

É compreensível quem considere que Essipov está certo em levantar, nesse solo, a contraposição entre Chalamov e Soljenítsin. Ainda mais porque uma série de ações do último em relação ao primeiro realmente parecem estranhas (por exemplo o uso de material, em "Arquipélago Gulag", tirado de "Contos de Kolimá", apesar da proibição direta de Chalamov etc.).

Já se tratando da juventude de Chalamov, Essipov nota, sobretudo, sua peculiar e "obstinada independência de pontos de vista", sugerindo, em partes, que ali poderiam se revelar "os genes seculares de padres". Essa "face de expressão incomum", usando palavras de Baratinski, guardou-se também por toda sua vida posterior.

Andrêi Turkov é crítico literário e membro do conselho editorial da revista "Questões da Literatura" ("Voprossi literaturi")

Este texto de Andrêi Turkov foi publicado originalmente como uma resenha à biografia de Chalamov por Valéri Essipov.

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