A Rússia não precisa de navios franceses

Ilustração: Iorsh

Ilustração: Iorsh

Cancelamento da compra dos navios Mistral foi mal que veio para o bem.

A ideia da compra dos porta-helicópteros franceses Mistral por parte da Rússia surgiu em 2008 e teve motivações puramente políticas. Na época, as relações franco-russas estavam em alta, depois de o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, ter desempenhado um papel crucial na resolução do conflito entre a Rússia e a Geórgia.

Da parte russa, a negociação tinha o apoio do presidente, Dmitri Medvedev, mas Vladímir Pútin, que na época era primeiro-ministro do país, nunca foi um entusiasta da compra dos navios e disse há dois anos: "Assinamos esses contratos para apoiar os nossos parceiros e dar trabalho aos estaleiros deles, mas sinceramente para nós, do ponto de vista do apoio da nossa capacidade de defesa, os contratos não têm qualquer importância".

Os navios franceses estavam condenados a se tornar um corpo estranho dentro da frota russa, e havia o problema do fornecimento de peças de reposição, que não seguem os padrões russos. Quando o relacionamento com o fornecedor é bom, é possível contornar tais dificuldades, mas o que acontece quando o país se encontra sob regime de sanções? Isso fez com que grandes dúvidas surgissem quanto à necessidade da Marinha russa de ter aqueles dois "brinquedos" caros.

O Mistral é um navio polivalente e pode tanto servir como embarcação de comando quanto como posto de comando durante operações militares no mar. Uma das razões para a aquisição dos navios era, precisamente, o desejo de obter acesso às modernas técnicas ocidentais de gestão de uma guerra naval. No entanto, a principal função do Mistral é a de desembarcar tropas longe da costa, operação que a Rússia não costuma realizar e que nem sequer faz parte de sua doutrina naval. A não ser, eventualmente, se Moscou quisesse desembarcar tropas na Síria para apoiar o regime de Bashar al-Assad ou usar esses navios para combater piratas perto da costa da Somália. Mas tais usos podem compensar os altos custos?

Os navios franceses, na verdade, não se encaixavam no conceito tradicional de uso militar dos fuzileiros navais russos. Ao contrário dos navios de desembarque russos, o Mistral não consegue se aproximar diretamente da linha costeira. Ele precisa de meios adicionais para o desembarque de equipamento pesado, para o qual, aliás, tem pouca capacidade de transporte a bordo. A instalação desses meios requer tempo e um grupo de embarcações militares que cubra esse segmento das operações. Essas embarcações, por sua vez, existem em pouco número na Marinha russa, devido precisamente à falta de prática no desembarque de tropas navais.

O equipamento militar usado pelas tropas navais russas no desembarque não está adequado ao Mistral segundo uma variedade de padrões. Os helicópteros Ka-52 e Ka-27, por exemplo, que iriam supostamente ter sua base a bordo desses navios, não conseguem entrar na abertura do elevador que os desceria para o hangar dos helicópteros. Além disso, os navios franceses usam um combustível mais inflamável do que as forças da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o que se torna crítico devido à maior vulnerabilidade do Mistral. E havia muitas outras dificuldades técnicas e incompatibilidades de padrões. O mais provável é que os navios tivessem que ser adaptados às condições russas, sem perspectivas claras quanto ao seu uso.

Mas o que realmente prejudicou a negociação foi o fato de a França, sob pressão dos aliados da Otan, ter se recusado a vender os navios com os dispositivos eletrônicos tradicionais da aliança – ou seja, o sistema informativo e de controle Senit 9 e o mais novo sistema da Otan de troca de dados e gestão das forças heterogêneas, o SIC-21. Isso derrubou o único argumento forte a favor da compra dos navios franceses.

Se apesar de tudo os Mistrais fossem entregues, eles provavelmente estariam condenados a uma utilização muito limitada, atuando principalmente como embarcação de transporte, adequada também para operações de resgate em situações de relativa paz.

Deve-se também levar em consideração que a própria França construiu para si mesma apenas dois navios Mistral e que suas tentativas de vendê-los a outros países ainda não foram bem-sucedidas nem uma vez. Se não fosse a encomenda russa, os estaleiros em Saint Nazaire estariam ameaçados de fechamento.

A Marinha russa de fato necessita de um veículo anfíbio de desembarque de nova geração. O mais provável é que agora ele vá ser criado com base no navio Priboi, que já vem equipado com um sistema eletrônico nacional e totalmente adaptado aos padrões russos. A construção do primeiro navio desse tipo está prevista para 2020. O Priboi é inferior ao Mistral em alguns aspectos - se desloca a uma velocidade menor e tem uma autonomia de navegação 20% menor -, mas em outros leva vantagem: tem um calado mais baixo, uma autonomia de permanência no mar até 30% superior e pode levar a bordo 30 helicópteros, em vez dos oito abrigados pelo navio francês.

De fato, é de se lamentar os sete anos perdidos com a negociação de compra dos navios Mistral. No entanto, devemos lembrar do ditado: “há males que vêm para o bem”. Ou ainda: “antes tarde do que nunca”.

Geórgui Bovt é cientista político e membro do Conselho para a Política Externa e de Defesa da Rússia

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