No limite entre a literatura e uma vida grandiosa

Ilustração: Tatiana Pereluíguina

Ilustração: Tatiana Pereluíguina

Ano da Literatura na Rússia pretende resgatar na população o imaginário por trás da realidade.

A Rússia entrou oficialmente no Ano da Literatura e, com isso, o país oferece um extenso programa de vários eventos destinados a aumentar o interesse pela leitura. O projeto “Leia a Rússia”, testado com sucesso em outros países, é voltado para as massas e vai beneficiar todos aqueles que trouxerem um livro da feira dos livros.

A ideia de que na Rússia atual não existe literatura é tão injusta quanto a afirmação de que não existe futebol. A literatura moderna russa é o espelho do nível de reflexão nacional. Sempre foi assim. Mesmo no tempo de Púchkin era possível encontrar notas críticas que começavam com as palavras: “Há que admitir que não temos literatura...”.

Espero que este seja o ano em que conseguiremos falar seriamente de literatura e, em geral, da criação artística, sem nos deixarmos levar por avaliações amadoras e raciocínios ingênuos no que diz respeito à relação entre arte e a realidade.

Gostaria, assim, de lembrar a epígrafe de “O Inspetor Geral”, de Nikolai Gógol – “A culpa não é do espelho se a cara é torta” – e dela extrair a ideia da fidelidade da palavra à verdade da vida. Mas a imagem do espelho transforma o ser real em um ser virtual que inevitavelmente substitui, modifica e transforma o curso dos processos visíveis da vida.

A arte e a literatura são a expressão sensorial do ser extrassensorial. E por isso é que o espelho possui sempre propriedades mágicas. Não faz sentido exigir que uma peça de arte tenha verossimilhança com o cotidiano – nem mesmo a prosa, que pretende ser documental. Afinal, nós não exigimos que nenhuma composição musical tenha correspondência exata com a voz humana.

O “realismo fantástico” de Gógol, Dostoiévski e Saltikov-Chedrin não passaria hoje no teste dos críticos que compartilham os pontos de vista de Benkendorf, chefe da Terceira Divisão do gabinete pessoal de Sua Majestade Imperial ou Polícia Secreta, que recomendou que Púchkin não se esquecesse em seus escritos de que “o passado russo foi majestoso, o presente é perfeito e o futuro ultrapassa a imaginação mais ousada”.

Essas palavras poderiam ser considerados uma paródia proibitiva se elas não coincidissem quase textualmente com o discurso espalhado hoje pela mídia em relação a filmes, espetáculos e obras literárias contemporâneas. A arte distorce sempre a realidade, mesmo quando cria dela uma imagem sublime e brilhante.

Em seu romance “Guerra e Paz”, Tolstói criou sua própria imagem detalhada da batalha de Borodinó, que por décadas tem sido contestada por historiadores militares e civis. Mas isso só prova que a imagem artística é capaz de expulsar a realidade da consciência social, absorvê-la e recriá-la com mais convicção e tangibilidade. É precisamente esse processo que denominamos de criação artística.

A literatura procura a verdade superior e as ideias superiores da vida humana – e, por isso, foge dos fatos. “Onde termina o documento, começo eu”, diz Iúri Tinianov, ao explicar o seu método de criação de romances históricos. Mas todo escritor que compõe a prosa da modernidade age do mesmo jeito. Releia o romance “Assam”, de Vladímir Makanin, que é, na minha opinião, o melhor livro sobre a guerra na Tchetchênia, e você vai ver que eu tenho razão.

Sempre que falo de literatura russa e do seu significado no espaço humanitário universal me vêm à cabeça as palavras de Thomas Mann. Amante das grandes literaturas europeias, ele destacou a literatura russa do século 19, chamando-a de “sagrada”. A santidade da palavra em relação ao mistério da vida humana reflete, em última instância, aquela moral maior da literatura russa que ilumina o difícil caminho do homem na história. Caminho de sofrimentos, perdas e esperança imortal.

E recordo ainda com maior frequência de Rozanov, para quem o que faz falta não é uma literatura grandiosa, e sim uma vida grandiosa, bela e útil. Mas nós somos russos e, por isso, queremos uma vida grandiosa e uma literatura grandiosa.

 

Mikhail Chvidkoi é representante especial do Presidente da Federação da Rússia para a Cooperação Cultural Internacional e foi ministro da Cultura de 2000 a 2004.

 

Publicado originalmente pela Rossiyskaya Gazeta

 

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