“Meu nome é Iúri. Nasci no corpo de menina e agora estou ilegalmente mudando de sexo”

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Iúri, 17 anos, mora em Moscou com um amigo também transexual e, nos últimos 18 meses, faz terapia hormonal. Por enquanto, aguarda os 18 anos para entrar com o pedido de mudança de sexo.

(Nota: Iúri não concluiu a transição e ainda é biologicamente mulher, mas prefere ser tratado no gênero masculino. Embora feliz em compartilhar sua experiência, Iúri não quis fornecer fotos pessoais para preservar sua segurança e integridade. Todas as imagens exibidas neste artigo foram tiradas de banco de fotos.)

Primeira segunda-feira de setembro em uma escola de Moscou. Começo de ano letivo, o professor da turma está fazendo chamada. Quando chama o nome de uma menina, um garoto levanta timidamente a mão, tremendo de ansiedade.

Ele já imagina sussurros e piadinhas pela sala de aula e, ao final, todos já saberão seu segredo. Mas fato é que todos estão tão embrenhados em seus smartphones que sequer prestam atenção nele. O primeiro dia de Iúri em sua nova escola passou sem incidentes.

Desde metade de 2017, o adolescente russo vem fazendo terapia hormonal ilegalmente (na Rússia, é preciso permissão especial para tanto, que só pode ser obtida a partir dos 18 anos). Não é por acaso que Iúri aguarda com mais expectativa seu aniversário do que os exames finais – ele então poderá mudar o nome em seus documentos e se submeter à cirurgia de mudança de sexo.

Terapia hormonal contra o suicídio

Iúri é o segundo filho mais velho de uma família grande. Ele prefere não revelar o nome de nascença. Com seus três irmãos, uma irmã e pais, morava em um apartamento de um quarto em um vilarejo na região de Moscou, com população de 11.000 habitantes. Todas as crianças dividiam o mesmo quarto.

Seu pai é um homem religioso, e a família costumava ir à igreja. Quando Iúri tinha 13 anos, seus pais se divorciaram. Desde então, a família parou de frequentar a missa.

Um ano depois, o jovem começou a ler artigos sobre pessoas trans e conheceu um amigo na internet que também queria mudar de sexo. 

“Eu aparecia na escola uma vez em nunca, mas na maioria das vezes ficava em casa olhando para o teto. Comecei a me cortar e tive várias tentativas de suicídio. Minha mãe não me deixava mais sair na varanda. Ela decidiu me levar a psiquiatras, mas eles não ajudaram”, conta Iúri.

Sua depressão durou quase o ano todo – até que decidiu iniciar a terapia hormonal por conta própria, comprando medicamentos ilegalmente.

“Minha mãe tinha entendido, mas não queria falar”

“Em uma farmácia, você só pode comprar os medicamentos se tiver receita, o que eu não consegui. Além disso, são mais caros lá. O que você compra na internet por 700 rublos (US$ 10,50), custará 5.000 rublos (US$ 75,20) em uma farmácia”, diz Iúri.

No verão, Iúri encontrou um emprego como entregador para economizar dinheiro e comprar o medicamento. O jovem também começou a usar uma faixa especial para apertar os seios e fazê-lo parecer “mais masculino”.

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Os primeiros resultados apareceram dois meses após o início da terapia: sua voz ficou baixa e rouca, seus cabelos ficaram mais escuros, e manchas apareceram em seu rosto. Os irmãos rapidamente perceberam e pediram à mãe que o levasse ao médico. Mas ela, ao observar o filho, sugeriu que ele procurasse um endocrinologista. “Eu sabia que ela tinha entendido tudo, apenas não queria falar sobre isso”, acredita Iúri.

Logo depois, Iúri pediu à mãe que o transferisse para uma escola em Moscou, sob o pretexto de que sua antiga escola tinha baixos padrões de ensino.

Ele não mencionou que seu amigo trans, que ele conhecera na internet, era aluno da escola. “Depois da minha depressão, minha mãe ficava basicamente feliz por eu estar vivo, então ela concordou”, diz Iúri.

Burocracia pré-cirúrgica

O jovem está agora se preparando para os exames finais na escola e pretende estudar química na universidade. O painel que poderá dar permissão para ele realizar a cirurgia de mudança de sexo será em São Petersburgo – em Moscou, são exigidas mais informações. Todos os testes e exames custam 32.000 rublos (US$ 481).

“Antes de tudo, vou precisar de um atestado de que não possuo problemas ginecológicos e vários outros certificados”, explica. “Antes de ser avaliado pelo painel, precisarei passar por um psicoterapeuta e escrever uma redação para eles sobre minha vida e as razões pelas quais quero mudar de sexo. Se eles diagnosticarem esquizofrenia ou transtorno bipolar, eu não poderei comparecer perante o painel.”

Um painel composto por um sexólogo, um psiquiatra e um endocrinologista determina se o diagnóstico de transexualismo se aplica à pessoa. Depois disso, os médicos emitem atestados com base nos quais a pessoa pode alterar seu nome nos documentos e marcar uma consulta para a cirurgia.

“Pode ser feito sem cirurgia e apenas mudar o nome, e isso é suficiente para algumas pessoas. Mas quero ir até o fim. Com certeza terei as glândulas mamárias, útero e ovários removidos. Se não for feito, pode levar a câncer”, diz Iúri.

Também haveria a possibilidade de construção de pênis – com pele disponível para construir um pênis – a partir do clitóris ou da pele do braço da pessoa, mas o resultado pode ser “esteticamente pouco atraente ou não funcionar adequadamente”, acredita Iúri. “É mais fácil criar uma vagina do que um pênis.”

De acordo com pesquisa recente do Centro Levada, 56% das pessoas na Rússia têm uma atitude negativa em relação às pessoas LGBT em geral. No entanto, quase metade das pessoas na Rússia (47%) acredita que os representantes da comunidade LGBT devem gozar dos mesmos direitos que outros cidadãos.

“Do ponto de vista legal, está tudo bem conosco, mas os russos têm uma intolerância quase inata ao pessoal LGBT. Portanto, não vale a pena fazer paradas aqui – as posturas se tornam ainda piores. É melhor começar com seriados de TV e filmes sobre a comunidade. Talvez seus representantes tenham uma vida mais fácil. Um dia.”

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