Como os ursos invadiam as ruas da Rússia

Nikolai Zobov, que trabalha no circo, passeando com seu urso em Moscou em 22 de junho de 1969.

Nikolai Zobov, que trabalha no circo, passeando com seu urso em Moscou em 22 de junho de 1969.

Yuri Lizunov, Alexander Chumichev/TASS
Não é apenas um estereótipo engraçado: na Rússia, encontrar um urso pelas ruas era algo mundano há pouco tempo atrás. Mas como isto era possível e como terminou?

Em 1° de julho de 1771, o Sankt-Petersburgskie Vêdomosti, jornal mais popular da capital do império, noticiou que dois camponeses da região de Níjni Nôvgorod (a 1.100 quilômetros da cidade) haviam levado dois enormes ursos para apresentarem 22 truques diversos – entre eles, imitando juízes no tribunal, camponesas se olhando no espelho e se escondendo dos garotos, uma mãe fazendo bliní e alimentando seu filho e soldados marchando com bastões, ao invés de rifles.

 Um domador e seu urso no século 19. Domínio público

Os ursos também podiam tirar pólvora dos olhos com as garras, com muito cuidado, ou tirar tabaco de mascar de trás da bochecha do domador. Os animais também davam a “patinha” a quem quer que quisesse segurá-la e, se lhe ofereciam uma taça de vinho ou cerveja, bebiam e agradeciam com uma reverência graciosa. Que cena!

No jornal ainda se lia: “A cada piada, o domador do urso diz rimas peculiares e engraçadas… O show não teria sido tão divertido se estas bestas selvagens e outrora indomáveis tivessem sido privadas de suas defesas naturais… Pelo contrário, suas garras não são aparadas e nem os dentes arrancados, como é feito geralmente. ”

A popularidade do show de ursos era enorme, e assim dois camponeses podiam comprar anúncios no jornal mais lido do país. Isto, afinal, indica que eles lucraram muito com os shows.

O urso que une o tsar ao camponês

Os ‘skomorokh’ em uma aldeia rural.

Historiadores russos afirmam que, na Rússia medieval, o filho de um tsar podia facilmente brincar com o filho de um camponês, porque seus jogos eram praticamente os mesmos. Isto é verdade também quanto aos jogos com ursos, apreciados tanto por aldeões quanto por cidadãos urbanos, nobres e indigentes.

Na corte do tsar, havia ursos caros, preparados especialmente para entreter a nobreza, mantidos em “menageries”. Para o povo simples, a chance de assistir aos shows de ursos surgia quando um treinador de ursos viajante aparecia nas redondezas.

Não se ganhava nada exibindo ursos destreinados, como no zoológico. Assim, a tradição do treinamento de ursos na Rússia começou bem antes do século 17, realizada por caçadores russos, os chamados “skomorokh”.

Filhotes de urso de apenas seis meses de idade eram retirados da natureza e ensinados a copiar as ações mais simples do homem. Cada ação era invocada por meio de alguma rima ou música que o urso reconhecia - e era por isso que os treinadores de ursos sempre cantavam e faziam rimas durante os shows.

Os treinadores geralmente viajavam com um violinista e um baterista, que ajudavam a atrair as pessoas para os shows. Eles caminhavam por quase meio ano durante as estações quentes.

“Um urso e uma cabra estão descansando e se entretendo com sua música. O urso veste um chapéu e toca uma flauta, enquanto a cabra, com sinos e colheres, dança”. Excerto de “lubok” (gravações populares russas nascidas no século 17).

Alguns camponeses não queriam treinar eles próprios seus ursos e, assim, eles apenas compravam um urso já treinado por 40 rublos. Para se ter uma noção, um carneiro novo custava 8 rublos, um advogado no interior recebia um salário de 20 rublos por mês e um chapéu custava 2 rublos.

Assim, com 1,5 rublo você podia comprar um tambor, com 3, uma rabeca, com 1,5, uma corrente e uma rédea, com 80 copeques passaportes para 3 camponeses e... voilà! Estava tudo pronto para um comércio que podia durar até 10 anos (até que o urso ficasse velho e cansado).

Durante a temporada, os domadores ganhavam cerca de 130 rublos e também roupas e alimento. Cerca de 25 rublos eram destinados a alimentar o urso por sete meses – um gasto equivalente ao da alimentação de três pessoas que o acompanhassem.

No final das contas, restava aos treinadores apenas entre 70 e 80 rublos. Metade disto ia para o dono do urso e metade era dividida entre violinista e baterista. Ou seja, o treinador ficava com aproximadamente 40 rublos por 7 meses de trabalho duro. Não era muito, mas era suficiente para um camponês pagar as contas.

Os ursos expulsando espíritos malignos

Treinadores de ursos em Kaluga, em 1928.

Mas havia maneiras de ganhar mais, usando um pouco de inteligência e o fato de que os russos acreditam que os ursos têm poderes sobrenaturais - eles poderiam, por exemplo, expulsar espíritos malignos, os “domovoi” de celeiros e das casas de madeira tradicionais do país, as “izbá”.

Ao chegar a alguma aldeia, o domador se certificava de contar muitas histórias assustadoras sobre os maus espíritos que destruíam as casas dos pobres camponeses.

Logo algum proprietário de uma casa preocupado se aproximava do domador, pedindo que este fizesse o ritual do urso em sua casa. Quando o urso se aproximava da casa, o treinador puxava discretamente um fiozinho amarrado a uma argola no lábio do urso, e o pobre animal recuava de dor e com o rugido ensurdecedor – parecendo, aos espectadores, ter sentido o espírito maligno.

Repentinamente, o domador dizia haver um poderoso domovoi maligno na casa, que podia ser impedido apenas por meio de feitiços poderosos - pelos quais ele e seu urso deviam ser muito bem pagos.

Após receber o pagamento, domador deixava, aos poucos, o urso relaxar e percorria com ele toda a casa e o pátio: dinheiro fácil!

Tratamento insuportável

Felizmente havia algumas pessoas que viam os “jogos com urso” como eles realmente eram: uma apavorante tortura dos animais. Em 1865, um ex-oficial do exército, o tesoureiro da Corte Imperial Piôtr Jukóvski fundou a Sociedade Russa de Proteção Animal.

Ela consistia de apenas 50 pessoas que defendiam a proibição oficial de brigas de galos, a abertura de um centro de cuidados dos animais e, mais importante, a proibição do treinamento de ursos.

O Ministério da Administração Interna reconheceu que o treinamento de ursos consistia não apenas da tortura de animais, mas também encoraja os domadores ao ócio por quase seis meses do ano, quando só bebiam e viviam como parasitas sociais.

Em 1867, o treinamento de ursos foi declarado como crime. Infelizmente, isto durou apenas cerca de 50 anos.

Valentin Filatov com ursos treinados durante um show em evento de gala dedicado ao aniversário do circo soviético. Circo de Moscou na Tsvetnôi Bulevar, 1969.

Ivan Filatov nasceu seis anos após a proibição do treinamento de ursos. Na idade adulta, ele se tornou um famoso treinador de leões, viajando com seu circo por toda a Rússia  - já que não houve proibição nas  apresentações com leões.

Seu filho, Valentín, seguiu os passos do pai e, na década de 1940, fundou um show chamado "Circo do Urso". O governo soviético via os circos como importantes meios de entretenimento para o povo, incentivava esses shows.

Assim, Filatov e seus ursos viajaram pela União Soviética e para o exterior, e o pesadelo dos ursos voltou a se tornar realidade. O pior, porém, é que agora os ursos tinham que andar de moto.

O que os espectadores não sabiam era o que acontecia com os ursos quando eles eram aposentados dos palcos.

“Em nosso país, não há sistema de aposentadoria para animais idosos de circos e zoológicos. O estúdio de cinema ‘Mosfilm’ tem um tipo de ‘abrigo de animais’. O problema é que, a partir desses abrigos, os animais passam a se transformar em espetinho. Ou um cobertura para o chão ”, afirma Karen Dallakyan, veterinária e defensora dos direitos dos animais.

O treinador de ursos Valentín Filatov com um urso em uma moto. Moscou, rua Górki (hoje, Tverskaia), 1965.

Os ursos aposentados são deixados à mercê de seus antigos treinadores: se estes são pessoas de bom coração, os ursos têm boas perspectivas de viver o resto da vida em condições decentes.

Artista homenageado da Federação Russa, o treinador de animais Pavel Kudria é uma dessas pessoas. Depois de seu número com os ursos Egor e Raia sair do repertório do circo, é ele quem mantém e alimenta os bichos às suas próprias custas na fazenda de um amigo, enquanto o “Rosgostsirk” (organização financiada pelo Estado para supervisionar circos) não reconhece o fato que os ursos trabalhavam já há muitos anos.

Há histórias felizes, porém. O famoso urso Stepan, que mora com uma família russa de treinadores de animais, trabalha como ator e modelo, e Masha, mascote de Iaroslavl (255 quilômetros a norte de Moscou) que desfruta de uma vida de celebridade entre os animais locais.

Mas a aposentadoria de animais de circo ainda é um grande problema na Rússia. Existe em vigor uma lei contra a crueldade quanto a animais - mas usar ursos no circos não é considerado crueldade.

Além disso, desde 27 de junho de 2018, a compra e venda de animais raros e ameaçados (listados no Livro Vermelho da Rússia ou protegidos por tratados internacionais) passou a ser considerada crime na Rússia. Assim, o país caminha rumo a um tratamento mais ético dos animais – ursos entre eles.

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