“Sempre desejei ir a Marte”, diz primeira mulher enviada pela Rússia ao espaço

"No final de 1961, fui convidada a fazer provas para cosmonauta, paralelamente a muitos atletas de clubes de aviadores de Moscou", conta Tereshkova Foto: Grigóri Sissóiev/RIA Nóvosti

"No final de 1961, fui convidada a fazer provas para cosmonauta, paralelamente a muitos atletas de clubes de aviadores de Moscou", conta Tereshkova Foto: Grigóri Sissóiev/RIA Nóvosti

Em entrevista à Gazeta Russa, a cosmonauta falou sobre as dificuldades dos treinamentos, a solidão e sua visão de universo.

Em 26 de setembro, ElenaSerova será a primeira cosmonauta enviada ao espaço pela Rússia nos últimos 20 anos. Ela passará alguns meses na estação espacial internacional, realizando junto com seus companheiros um trabalho de investigação científica. Elena se demonstrou em excelente forma nos entreinamentos, chegando a superar seus colegas homens em alguns testes físicos. Segundo IúriLontchakov, diretor do Centro de Treinamento de Cosmonautas da Rússia, não há uma razão especial pela qual as mulheres não foram enviadas ao espaço durante todo este tempo, isso simplesmente ocorreu porque não surgiram candidatas femininas capazes de aguentar o regime de preparação e os duros treinamentos físicos.

Quando se fala da presença feminina no espaço, é impossível não pensar em ValentinaTereshkova, a lendária pioneira dos voos espaciais, que abriu viajou ao espaço em 16 de junho de 1963, em um foguete Vostok-6. De temepramento fechado, Tereshkova, que hoje tem 77 anos, não gosta de dar entrevistas, levei meio ano para conseguir este encontro com ela. Por fim, ela me recebeu em seu gabinete, entre duas reuniões de um comitê da Duma Estatal (Câmara dos Deputados da Rússia), da qual hoje faz parte.

ValentinaTereshkova se apresentou para a entrevista com um ar fresco e ótimo aspecto, mas não gostou de meu elogio, feito com toda franqueza. Talvez esteja farta. Entre duas sessões de trabalho, entrou apressada em seu gabinete no 10º andar da sede da Duma Estatal, dando a entender que tinha pouco tempo para a entrevista.

Gazeta Russa: A senhora foi um dos primeiros políticos a se deslocar à Crimeia no período de transição. Pessoalmente, tem uma relação próxima com a Crimeia, não é verdade?

ValentinaTereshkova: Enquanto me preparava para o voo espacial, estive na Crimeia. Em Feodóssia, saltávamos de paraquedas para o Mar Negro treinando com escafandros pesadíssimos. Mais tarde, era na Crimeia que passava as férias com meu marido e filhos. Sou ainda mais ligada à Ucrânia, já que era lá que vivia a irmã mais velha de minha mãe, já falecida. Meus primos eram mineiros, trabalhavam em Donbass. Ainda tenho sobrinhos e sobrinhas no país, me telefonam muito preocupados. Mantemos a ligação e, é claro, estamos prontos para os acolher, mas é uma possibilidade ainda remota, pois há muita coisa que os mantêm lá, como os túmulos dos entes queridos, o trabalho…

A senhora já foi paraquedista. Também é radical em sua vida?

Nunca me considerei como tal. As pessoas fazem o que devem fazer, e, quando encontram obstáculos, os superam. Na época, havia muita gente que queria ir para o espaço. O feito de Gagárin [Iúri Gagárin, cosmonauta soviético que foi o primeiro homem a viajar para o espaço] deu asas a muitos, sobretudo aos esportistas ligados à aviação. Qualquer profissão comporta riscos. Fomos preparados por especialistas que lutaram na Segunda Guerra Mundial, pilotos de combate. Antes de mim, estiveram no espaço IúriGagárin e GuermanTitov.

No final de 1961, fui convidada a fazer provas para cosmonauta, paralelamente a muitos atletas de clubes de aviadores de Moscou. Entre mais de mil candidatas de todo o país, foram selecionadas cinco jovens mulheres: duas da capital, sendo as restantes de Riazan, Sverdlovsk e de Iaroslavl, que era eu. Na altura não se falava de espaço, nos propuseram apenas que testássemos novos meios técnicos de voo. Fomos postas à prova em todos os aspectos: capacidade física, estabilidade psicológica…

No início de 1962, começou a preparação ativa. O comandante de divisão Iúri Gagárin, com todo seu fascínio, era muito exigente. Os treinamentos davam prioridade à vertente psicológica sobre a física. Nos apresentámos como paraquedistas e saltávamos noite e dia, na terra e no mar. Foram estes os primeiros voos. A experiência de Gagárin, Titóv e Nikolaev nos ajudava, nos deparávamos com muitas coisas novas, como a sensação da ausência de gravidade. Nessa época, não havia aparelhos especiais de treino, nem hidrolaboratórios. Durante voos acrobáticos, eram criados curtos momentos de imponderabilidade para termos a noção do que era e nos habituarmos a ela.

Havia um cadeirão circulante em que tínhamos que permanecer sentados, fazendo inclinações para um lado e para o outro. Havia também uma câmara térmica, onde nos mantinham vestindo uniformes de aviador a uma temperatura de 70º C. Tínhamos ainda uma câmara dessonorizada, onde cada um de nós passava dez dias e dez noites.

Como conseguia aguentar a solidão numa câmara isolada?

Nunca experimentei ataques de claustrofobia. Na câmara, eram postos à prova nosso estado psíquico e funcionamento cardíaco, eram feitos muitíssimos testes, por exemplo, para verificar o grau de visão. Podíamos ter conosco um livro, e eu lia com prazer a poesia de Nekrassov.

Há quem pense que, no espaço, um astronauta depende apenas de si próprio, sofre com a solidão, está atento a suas sensações, luta contra sobrecargas ou simplesmente está dormindo. Na realidade, ele tem que executar todo um programa que praticamente não lhe deixa tempo livre. O exercício físico era obrigatório. Em horas marcadas, tínhamos que medir a pressão arterial, colher sangue e cumprir todas as outras tarefas. Além disso, tínhamos que estudar minuciosamente a nave, o equipamento e a aparelhagem de bordo.

Deve ser, mais ou menos, como quando estamos no hospital. Pensamos que pelo menos vamos descansar, mas temos os tratamentos, depois as refeições, a ronda médica, visitas de familiares, enfim, nem um minuto de descanso!

Exatamente. Estamos sob constante vigilância médica, todos os nossos comportamentos e reações são controlados. Ainda que não se veja nem se ouça ninguém, os nossos mínimos movimentos estão sendo observados.

Em setembro, a russa Elena Serova será enviada ao espaço, depois de um enorme intervalo de lançamentos de nossas cosmonautas. Svetlana Savítskaia também voou para o espaço longos 19 anos depois de você. Por quê?

Após meu voo, Serguêi Korolióv sonhou mandar para o espaço uma equipe feminina, até começamos a preparação. Acontece que Korolióv faleceu em 1966, e o nosso voo foi suspenso. Um ano depois, Vladímir Komaróv morreu ao testar a primeira nave Soyuz. Mesmo assim, ele ajudou a esclarecer o funcionamento da cápsula e de seus sistemas. Suas observações permitiram melhorar o programa Soyuz.

Finalmente, se iniciaram os voos. Ficámos esperando a hora de nosso lançamento. Mas em 1971 aconteceu o acidente mortal da equipe composta por Gueórgui Dobrovólski, Vladislav Volkov e Víktor Patsaiev, quando regressavam da estação MIR. Ficamos para trás outra vez, a prioridade era descobrir o que aconteceu com aquela nave. Seguiram-se outros contratempos e desarranjos. Os especialistas se ocupavam de outros assuntos.

Cada voo é uma prova, cada um deles dá algo de novo à cosmonáutica. Passou muito tempo até que Svetlana Savitskaia fosse para o espaço, mas integrando uma equipe masculina. Foi a primeira mulher a sair para o espaço aberto, ela que deveria ter encabeçado a primeira equipe espacial feminina em 1986, o que não chegou a acontecer.

Elena Kondakova voou duas vezes, tendo permanecido em órbita 180 dias, tempo recorde para uma mulher. Em termos gerais, a cosmonáutica feminina tem excelentes perspectivas. Hoje, o Centro de Treinamento de Cosmonautas, criado por nós, continua preparando mulheres para voar no espaço.


Foto: RIA Nóvosti

A propósito das recentes sanções impostas à Rússia, é bom lembrar que há astronautas norte-americanos que se preparam juntamente com os nossos e que voam em naves russas. É evidente que eles não estão interessados em sanções, sejam elas quais forem. Eles vêm para o nosso centro, onde aprendem a voar em nossos foguetes, enquanto os cosmonautas russos vão para Houston, sede da Nasa. Entretanto, os políticos dos EUA estão violando os termos da cooperação. Os responsáveis norte-americanos já foram avisados que se continuarem a impor sanções, nós imporemos as nossas, o que será bem pior para eles do que para nós.

Gostaria de voltar ao espaço?

Claro que sim, pena que a idade não o permita. Sempre desejei ir a Marte. Estudei este planeta durante anos, li tudo o que foi escrito sobre ele.

Em junho de 1963, sob o nome de Tchaika (Gaivota), que lhe foi dado pelo programa, você sobrevoou a Terra 48 vezes. No momento da descolagem, pronunciou palavras que se tornaram célebres: “Oh, céu, é de se tirar o chapéu!”. Costuma celebrar esta data?

Preservamos as tradições lançadas por Iúri Gagárin, nos juntamos todos, recordamos, falamos de nossa profissão, do novo e do interessante. São encontros de profissionais. Além disso, compartilhamos nossas pequenas novidades terrenas. Por exemplo, no dia 30 de maio, celebramos juntos os 80 anos do meu grande amigo cosmonauta Aleksêi Leonov. No meu círculo de amigas há norte-americanas, uma francesa e uma inglesa. É que nossa profissão une as pessoas, mostrando o que realmente são. Nós nos ocupamos apenas de competências profissionais, deixando de lado a política.

Depois de ter estado no espaço, acredita na organização racional do Universo? Acredita que possa haver vida em outros planetas?

Por enquanto, todas as tentativas dos cientistas de encontrar uma forma racional de vida foram frustradas. Mas o Universo é infinito, não podemos excluir a existência de planetas com uma forma de vida qualquer. Aliás, se houver seres vivos, deve ser muito longe, por isso não nos respondem. Continuamos a mandar para o espaço informações sobre a Terra e os seres que a habitam. Ainda não obtivemos resposta nenhuma. Há décadas sondamos o Universo!

Acha que ele está bem organizado?

Penso que essa pergunta deve ser feita a Deus. Talvez tudo não seja tão linear, caso contrário as pessoas não agiriam como têm agido na Ucrânia. 

 

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