Quando o tradutor vence como escritor - e vice versa

Ilustração: Dmítri Dívin

Ilustração: Dmítri Dívin

Para pesquisador, número modesto de títulos russos em mais de 50 anos do Prêmio Jabuti, por exemplo, indica falta de especialistas na língua.

Não apenas uma, mas três vezes já fiz parte do júri do mais conceituado prêmio do Brasil na área de tradução literária, o Jabuti. Cerca de três meses antes de cada uma dessas premiações, recebi uma caixa com quase 50 livros. Em minhas primeiras participações, constavam entre os volumes tanto os originais como as traduções. A última, porém, não seguiu tal tendência.

Mesmo assim, como dar conta de lê-los todos, com uma vida já cheia de compromissos na universidade, aulas, dissertações e teses de mestrandos e doutorandos, leituras para fazer, artigos para escrever, pareceres para entregar, congressos para organizar, e uma infinidade de outras atividades? E não falo só por mim, pois não sou o único jurado que não pode aguardar as mil merrecas pagas pelo prêmio para sobreviver.

Todas as vezes me arrependi de aceitar a tarefa. Logo em seguida, surgia o dilema: conseguirei ler todos ou, pelo menos, uma boa parte dos livros enviados? Claro que não!

Então que fazer? Primeiro, eliminar alguns e separar possíveis possíveis vencedores. Eliminar “os mais fracos” significa, na prática, cortar as chances de premiação a traduções de livros curtos em prosa, de escritores desconhecidos, os que foram feitos em um prazo curto demais, histórias em quadrinhos, auto ajuda. Em outras palavras, "os menos sérios". Junto a outros dois membros do júri, eu precisava apresentar uma lista curta de finalistas com apenas dez títulos para o julgamento final.

E o que entra nessa lista final? As traduções dos “grandes”. No caso da premiação de obras originalmente publicadas em inglês, Shakespeare, Chaucer, Henry James e a agora muito traduzida no mercado Virginia Woolf, que caiu em domínio público. E lemos tanto as traduções quanto os originais? Se tivermos tempo, talvez. E cotejamos as traduções com os originais? Isso exige muito tempo - e não necessariamente conhecemos a língua original.

Mas quantos membros do júri, durante a longa história dessa categoria do Jabuti, que remonta a 1962, tinham conhecimento do original para cotejá-lo com a tradução?

Se analisarmos os finalistas do Prêmio Jabuti de 2015, veremos que quatro das obras finalistas vieram do latim ("Elegias de Sexto Propércio", com tradução de Guilherme Gontijo Flores;  "Héracles", Trajano Vieira; "Medeias Latinas", Márcio Meirelles Gouvêa Júnior; "Spinoza, Obra Completa – Vols. 1 a 4", J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto Romano); uma foi vertida diretamente do tcheco por Luís Carlos Cabral ("As Aventuras do Bom Soldado Svejk"); e outra, do russo, por Irineu Franco Perpétuo ("Vida e Destino").

A tradução de Spinoza terminou em primeiro lugar e "Vida e Destino", em segundo. Não tenho informações sobre o júri, mas duvido que os membros fossem especialistas em latim e tcheco e tenham tido a possibilidade de cotejar original e tradução.

Assim, se não é a precisão e a qualidade da tradução em si, qual é a base das decisões do júri? Em primeiro lugar, a qualidade do português em si. Se nem todas as línguas originais são conhecidas pelos jurados, o português, pelo menos, o é, e muito bem. Assim, eles exigem um português de alta qualidade que reflita o teor do original.

O júri ideal deveria ter conhecimento de todas as línguas traduzidas e muito tempo para sua análise, além de reunir especialistas brasileiros em tcheco, latim e russo que também conhecessem profundamente a língua portuguesa e tivessem tempo e vontade para julgar o Prêmio Jabuti. Tarefa muito difícil, talvez impossível!

Em segundo, como mencionado anteriormente, fica o peso da obra, que deve ser importante; ter sido publicada por editora conceituada; ser, preferencialmente, inédita; ter prefácio extenso e notas do tradutor - um tradutor geralmente experiente, que já verteu diversas obras de peso, e já foi indicado ao Jabuti, sem vencê-lo.

Esse seria o caso de Alípio Correia de Franca Neto. Tradutor de Joyce, Coleridge, Browning Gerard Manley Hopkins, Philip Larkin e Púchkin, entre outros, ele ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti de 2002. Então, sua tradução de "Poems Penny Each" ("Poemas, um tostão cada"), de James Joyce, ficou para trás da versão de Haroldo de Campos para a "Ilíada" e da edição comentada de "Alice", por Maria Luiza de A. Borges.  

Então, em 2014, a Editora Leia publicou "Vênus e Adonis" com tradução de Alípio. Foi a primeira publicação do poema de Shakespeare no Brasil, e era impecável tanto na métrica quanto em termos semânticos. Com a grandeza de Shakespeare refletida integralmente ao leitor pela pena de Alípio, sua vez chegou: a escolha do tradutor foi unânime entre os três membros do júri do Jabuti de 2014 para obras literárias vertidas da língua inglesa, categoria especial patrocinada pelo Conselho Britânico.

Premiando o tradutor inglês

Ainda não existe um Prêmio Nobel de tradução. As traduções, porém, têm um papel central no Prêmio Literário. Afinal, em que língua o júri da Academia Sueca leu a obra de José Saramago, vencedor em 1998, ou Orhan Pamuk, em 2006, ou ainda Mário Vargas Llosa, em 2010?

Se a obra não ainda não estava vertida em sueco, é bem provável que tenha sido lida em inglês. Então, o mais provável é que a versão sueca seja uma tradução da obra já traduzida para o inglês. No caso de Orhan Pamuk, o escritor turco sempre trabalhou junto a sua tradutora, Maureen Creely, sabendo que a versão dela seria utilizada como uma "relay translation", ou seja, uma intermediação para a maioria das outras línguas.

Já a prosa de Saramago é material muito difícil de se ler, com sua técnica de fluxos de consciência e falta de pontuação. Seu tradutor para o inglês, o escocês Giovanni Pontiero, professor de literatura brasileira na Universidade de Manchester, “arrumou” o estilo de Saramago, encurtou sentenças e facilitou sua leitura.

Para quem tem problemas em ler o escritor português no original mesmo sendo nativo, sempre recomendo a leitura das traduções em inglês. Mas, antes de acusar Pontiero de destruir a prosa do Nobel português, é preciso enfatizar que Ponteiro e Saramago eram grandes amigos, e essas mudanças e “simplificações” foram feitas com o conhecimento de Saramago, que talvez tenha até mesmo as encorajado, possivelmente aspirando a prêmios como o Nobel.

Então, quem ganhou o Prêmio Nobel? Será que Saramago ainda teria sido o vencedor se as versões em inglês fossem tão densas quanto os originais? Afinal, inovações estilísticas nunca foram um critério importante para a outorga do Nobel de Literatura.

John Milton é professor titular de estudos da tradução na USP

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