Ruína do patriarcado é foco de musical sobre Rússia czarista

Para quem acredita num mundo oprimido pelo patriarcalismo, está na hora de dar umas boas risadas. José Mayer liberta-se do papel de galã de novela para encarnar Tevye, um leiteiro judeu e miserável, em “Um violinista no telhado”. Peça fica em cartaz até 15 de julho em São Paulo.

Fotos: Guga Melgar

Para quem acredita num mundo oprimido pelo patriarcalismo, está na hora de dar umas boas risadas.

José Mayer liberta-se do papel de galã de novela para encarnar Tevye, um leiteiro judeu e miserável, cujas únicas bênçãos são também suas desgraças: ele tem cinco filhas para casar e um cavalo que, machucado, está impedido de ajudá-lo com a carroça de leite.

Em cartaz em São Paulo até 15 de julho, “Um Violinista no Telhado” é o primeiro musical de Mayer e estreou no Rio.

Dirigido e adaptado pela dupla Charles Möeller e Claudio Botelho (“Hair” e “Gypsy”), o clássico de Joseph Stein é baseado nos tradicionais contos judaicos do russo Sholom Aleichem, com aclamada coreografia de Jerome Robbins (preservada na montagem brasileira).

No elenco de 43 atores, entre veteranos e crianças, destacam-se Soraya Ravenle, como Golda, a esposa do leiteiro, e Julia Fajardo, filha de Mayer na vida real e na peça, onde interpreta Chava.

O espetáculo foi o primeiro musical a ficar em cartaz na Broadway por mais de sete anos consecutivos e arrebatou o prêmio Tony, conhecido como “o Oscar do teatro”, em várias categorias.

Por aqui, já ganhou o Prêmio Shell-Rio de direção musical, assinada pelo maestro Marcelo Castro, que coordena 17 músicos.

Mayer, que há três anos tem aulas regulares de canto e toca piano desde os 12, foi indicado como melhor ator e impressiona com a atuação segura.

A montagem é considerada o “Rei Lear” dos musicais, com investimento de R$ 7 milhões, consultoria de especialistas em cultura judaica, trocas de cenário (nove no total), 160 figurinos e efeitos especiais, como um personagem-fantasma que voa sobre o palco.

Pai, patrão e tsar perdem poder

O pano de fundo da história é a vida sem perspectiva de Anatevka, uma cidadezinha imaginária russa, nos anos de 1905 e seguintes.

A escolha do contexto não é casual. A primeira revolução russa do século 20 estourou em 1905 e foi o estopim imediato da Revolução de 1917, que culminou na criação da União Soviética, na execução do tsar e de sua família e na instauração de um governo operário.

Foi também em 1905 e na Rússia que nasceram os sovietes, conselhos deliberativos de camponeses, soldados e trabalhadores.

No mesmo ano, aconteceu uma variante da nossa Revolta da Chibata (1910), o motim de “O Encouraçado Potemkin”, imortalizado pelo cineasta russo Serguêi Eisenstein em 1925, em dos melhores filmes de todos os tempos.

A peça trata da tolerância, mas seu tema mais profundo é a ruína da autoridade e de todas as figuras identificadas com o pai.

Junto com o patriarcado começa também a ruir tudo o que Freud associou a esta variante de organização social: as relações com o genitor, o patrão, o tsar e Deus.

Portanto, o texto não é ingênuo e, em cena, não é só a cidade de Anatevka que está mudando, mas o mundo.

A ruína patriarcal abre caminho para a ironia diante da autoridade. É como se nos permitíssemos rir dos enredos apocalípticos de Dostoiévski, apresentando uma reação muito humana contra o juízo final ou contra o desamparo da existência.

Tradição que equilibra a vida

Tevye representa no palco um homem tão frágil que só encontra em Deus e nas tradições religiosas o anteparo necessário para seguir vivendo.

Seu pensamento é que, “sem a tradição, nossas vidas estariam balançando no abismo como um violinista no telhado”.

O diretor Charles Möeller concorda: não fosse assim, os judeus poderiam ter desaparecido, “mas não aconteceu por causa, fundamentalmente, de um amor maior à família, à tradição e aos rituais”.

O leiteiro, cujas filhas não aceitam os maridos que ele escolhe para elas, ironiza os amplos poderes divinos que não o socorrem.

São diálogos engraçados, em que o pai evoca com humor refinado e antitrágico a sua própria miséria e relembra a fraqueza nem sempre exposta de patriarcas bíblicos como Moisés e Abraão.

E como desgraça pouca é bobagem, o desautorizado Tevye ainda acaba vivendo a sua diáspora, expulso da aldeia com a família e todos os judeus da comunidade. É o “pogrom”, a perseguição antissemita perpetrada pelas autoridades da Rússia tsarista.

Com muita música e danças plasticamente belas, o musical remete à história verdadeira de famílias judias expulsas sumariamente de suas terras.

A fim de que o dia da expulsão pareça às crianças apenas mais um dia comum, as mães judias costumavam nessas circunstâncias seguir uma rotina inútil, limpando a casa e regando as plantas antes de fechar as portas e partir rumo ao exílio para sempre.

O ritual aludido na peça e aparentemente vazio de sentido recolocava uma certa ordem no caos, diluía a violência da mudança na placidez dos hábitos, dava um equilíbrio à ordinária miséria humana e permitia seguir vivendo, cantando, dançando e ouvindo a música dos violinos, à beira do telhado da vida.

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