Eu queria que Anna ficasse na memória das pessoas

Foto: Reuters

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No dia 7 de outubro, completou cinco anos a morte da jornalista russa Anna Politkóvskaia, assassinada a tiros. O crime ocorreu na entrada de seu prédio. O documentário “O sabor amargo da liberdade”, dedicado à jornalista, venceu o concurso documentários na cidade canadense de Montreal. A diretora do filme, Marina Goldóvskaia, fala sobre Anna e o filme.

Uma dama nada de ferro

- É pena o filme não ter estreado na Rússia...

Mandei o pedido para a inclusão de meu filme no programa do Festival de Cinema de Moscou, mas não recebi nenhuma resposta. Deve ter sido porque meu pedido chegou muito atrasado. Então, Vitáli Mánski, muito afeito aos documentários, prometeu organizar a exibição de meu filme no Festival Louro (mostra de cinema documental e de TV de Moscou). Gosto muito desse festival, participei do júri em uma de suas edições e até fui agraciada com um prêmio (em 2005, pela “Contribuição para as Crônicas Cinematográficas” - nota da revista The New Times). Após o filme deveria entrar em circuito comercial.

- Dizem que o filme pode ganhar o Oscar...

Marina Goldóvskaia, 

documentarista, doutora em Artes, membro da Academia Russa de Televisão e da Academia de Cinema americana. Nos tempos soviéticos, trabalhou como diretora e cinegrafista do consórcio de cinema Ekran. Lecionou na Faculdade de Jornalismo da Universidade Lomonossov, em Moscou. É autora de dezenas de documentários, dos quais os mais conhecidos são “Um homem da cidade de Arkhanguelsk”, “Oleg Efrémov”, “O Governo das ilhas Solovetskie”, “O sabor da liberdade”, “Fragmentos de um Espelho. Diário de uma Época Conturbada”. Desde 1994, vive nos Estados Unidos e é professora da Escola de Cinema da Universidade da Califórnia (Los Angeles).

A Associação Internacional de Cinema Documental selecionou 15 filmes, inclusive o nosso, para a exibição em cinemas de Nova York e Los Angeles. É uma etapa classificatória para a nomeação para o Oscar. Depois, os membros da Academia de Cinema vão selecionar cinco dos 15 candidatos à nomeação. O resultado será divulgado no inverno.

 
 

Outra Vida
 

- Você conviveu com Anna Politkóvskaia durante muitos anos...
 

Eu conheci Anna em 1990 quando estava fazendo o filme “O sabor da liberdade”. Eu queria contar sobre aquilo que se  passava em nosso país naquela altura. Para mim, o mais importante tem sido sempre encontrar pessoas interessantes para relatar, por seu intermédio, a época vivida. Escolhi, para isso, o casal Politkóvski. O marido, Aleksandr, meu ex-estudante, era na época um jornalista muito conhecido na Rússia e trabalhava no programa televisivo “Vzgliad” (Olhar), muito em voga nos tempos da perestroika. Anna Politkovskaia também concluiu o curso de jornalismo. Sua monografia de final de curso foi dedicada a Marina Tsvetaeva (poetisa russa do século 20). Quando a conheci, ela era uma pessoa completamente diferente. Muito caseira, ela adorava seus filhos e estava doida para lhes dar uma educação impecável. Levava seu filho, Ilia, e sua filha, Vera, a uma escola de música, verificava seus deveres de casa, cuidava do lar... Ela era uma mãe maravilhosa e esposa maravilhosa. Naquela altura, era difícil imaginar que, com o tempo, ela se dedicasse ao jornalismo e que o jornalismo se tornasse o principal sentido de sua vida.

- Porque você a filmou tanto naquele período?

Anna era a alma da família, suas emoções e pensamentos refletiam a situação não só em sua casa, como também no país. Naquela altura, nosso país deu uma arrancada para uma vida nova. Todo o mundo estava com euforia e grandes expectativas. Anna sentia pessoalmente o que estava acontecendo no país. Ela era uma bela mulher, extremamente carismática, sincera, tinha uma incrível capacidade de articular claramente seus pensamentos. Contatos com ela me davam um riquíssimo material. Passamos horas a fio conversando.

Nada de empréstimos

 
- Você filmou Anna durante muitos anos seguidos, já sabia que iria fazer um filme sobre ela?

Em 1990, eu não pensava que aquelas imagens virariam um filme sobre ela. Mas eu queria filmá-la e falar com ela sobre o que ela sentia, especialmente quando ela se tornou correspondente de guerra. Perguntei muitas vezes a ela se estava com medo. Ela respondia que estava e que, na guerra, todo mundo corria o risco e que devia haver quem informasse a sociedade sobre aquilo que acontecia na Chechênia.

- Terá ela pensado sobre o perigo? Terá falado sobre isso?

Não, não falou. Disse que havia recebido ameaças e que deveria partir por um tempo de Moscou. O jornal “Novaia Gazeta” a protegia e não a deixava ir à Chechênia. Mas quando ela conseguiu uma viagem à Chechênia, ninguém pôde dissuadi-la. Após a morte de Anna, sua amiga íntima Lena Baranóvskaia contou que Anna nunca havia pedido dinheiro emprestado, dizendo: “Esse é meu princípio! Pode acontecer de eu não poder pagar o empréstimo”.

- Quando você a filmou após ter sida envenenada em Beslan, ela disse que “não podia mais” e que, se houvesse assalto, iria deixar sua profissão...

 
Acho que ela disse isso sob a ação de uma emoção. Ela estava com os nervos em frangalhos. Acreditava que um jornalista devia ajudar as pessoas e se não podia, não fazia sentido ele continuar exercendo sua profissão. Ela podia emigrar para os EUA, país onde nasceu. Mas ela tinha um profundo sentimento de dever e deixaria de respeitar a si própria se tivesse emigrado. Como ela disse, não poderia abandonar aquilo que se tornou parte de sua vida nem as pessoas que nela acreditavam.

Coragem de saber
 
 

- A notícia do assassinato de Anna Politkóvskaia ganhou as manchetes dos telejornais de muitas cadeias de TV internacionais. Tinha-se a sensação de que ela era mais amada e mais apreciada mundo afora do que na Rússia. Você tem alguma explicação porque na Rússia ela era vista de forma diferente?

Eu sei porque muitos não gostavam de seus artigos e não podiam lê-los. Cada pessoa tem um limite da dor. Quando você tem contato sempre com coisas negativas e trágicas, você fica com aversão, dizendo “Ah, meu Deus, outra tragédia não! Outros mineiros soterrados, outro navio naufragado...”. Se bem que, nos tempos soviéticos, muitos sentissem a falta de liberdade e aversão às realidades soviéticas, a vida era mais quieta e, aparentemente, mais estável e não obrigava a fazer escolhas a cada minuto. Para ler suas reportagens da Chechênia, era necessário ter coragem. Ela sabia disso, mas não podia deixar de escrever, acreditando que as pessoas deviam saber o que estava acontecendo. Costumava dizer que quem não podia ler seus artigos que não os lesse. Acho que muitas pessoas simplesmente se opunham, em seu íntimo, às informações por ela divulgadas, acusando-a de não amar seu país e de defender os chechenos... Sim, ela defendia os chechenos, não os assassinos, mas aqueles que ficavam sem lar nem meios de subsistência e que perdiam seus filhos. Da mesma forma, ela defendia os russos que estavam na mesma situação. Era uma reação humana normal ao sofrimento humano.
 
 

- Há muitos filmes dedicados a Anna Politkóvskaia. O que você quis dizer sobre ela com seu filme?
 

Eu queria fazer um filme sobre o que ela era para seus familiares e amigos. Depois de sua morte, ela começou a se transformar em um mito. Eu queria que, na memória das pessoas, ela não ficasse como “dama de ferro”, mas o que ela era na realidade: uma pessoa afável e sincera, pronta a ir em socorro de todos quantos estavam em perigo.

 

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