Uma cidade que foi criada para fascinar

Assim como Brasília, São Petersburgo foi projetada a partir do nada para ser uma obra de arte.

Os primeiros visitantes de São Petersburgo, considerada a “Veneza do norte”, descobriram o encanto de uma cidade que, na época, parecia uma gigantesca paisagem. Europeus, ficaram impressionados com sua beleza exótica e artificial. Após uma visita à cidade, em 1839, o marquês de Custine registrou em seu livro La Russie (em português, “A Rússia”)diversasimpressões a respeito da viagem: “A cada passo, eu ficava surpreso com a combinação de arquitetura e decoração teatral”, escreveu.

Pedro, o Grande, e seus sucessores, viam a capital como um grande teatro. Em um espaço de tempo relativamente curto, o projeto do tsar foi tomando forma: do nada, surgiram canais, palácios e grandes avenidas. Assim como o marquês francês, Dostoiévski a descrevia como a cidade mais planejada do mundo. Após Púchkin, porém, muitos outros escritores pressentiram males sobre a então capital da Rússia, como se uma maldição fosse recair sobre aquele lugar projetado em oposição à natureza. As inundações do rio Neva e os incêndios se encarregaram de soar o alarme entre os catastrofistas; Odóievski, Lérmontov, Nekrásov e Dmítriev, por sua vez, “sonharam” com outros acidentes muito piores.

São Petersburgo, uma “ilusão” em forma de cidade, deu origem a uma série de figuras literárias que herdaram algo do seu caráter sonhador e ambíguo. Dentre elas, é possível destacar Gógol, Dostoiévski, Gontcharov, Gumiliov, Bieli e Mandelstam. “A Inundação”, última obra de Evguêni Zamiatin traduzida para o castelhano, apresenta a cidade como o cenário fatídico de uma tragédia digna de Sófocles.

Previsto em tantas obras ficcionais, o desaparecimento da cidade nunca chegou a se tornar realidade.  Mesmo com tantas previsões catastróficas, ela completou 300 anos de vida e continua sendo, entre outras coisas, uma das grandes capitais do mundo para a música e a dança. Novos e ambiciosos projetos são colocados em prática, como a nova Ilha Holanda de WORKac, o novo cais, a ampliação do Teatro Mariínski – obra iniciada por Perrault e continuada por Diamond+Schmitt – e o centro de negócios Quattro Corti de Piuarch.

A história da sobrevivência de São Petersburgo remete aos primórdios da cidade. Analisando-se sob uma perspectiva temporal, a região não somente enfrentou o clima adverso e as forças da natureza como também os decretos do tsar, o nascimento da polícia secreta na rua Fontanka 16, os atos revolucionários, 29 meses de cerco, a queda de um regime estagnado e a invasão do capitalismo.

Em 1991, os moradores da cidade decidiram resgatar seu antigo nome – São Petersburgo, claro – e o de outras ruas importantes, assim como o escudo que lhe foi concedido pela imperatriz Catarina, a Grande. Esse gesto, que levou à recuperação de parte de sua biografia, constituiu um ponto de partida para um futuro que ainda se mostrava incerto. Hoje, ela continua a apontar para o céu com sua agulha de ouro, devolvendo ao mundo mais do que importou de sua vizinha Europa, tanto nas artes como nas ciências, em seus primórdios.

Traduzida em imagens


Este texto é acompanhado de uma série de fotografias panorâmicas que tirei junto a Ferran Mateo. Elas foram encomendadas pela Fundação Teatre Lliure de Barcelona, um dos espaços mais emblemáticos da cidade espanhola. Como escreveu a princesa Madame de Staël em 1812, “tudo em São Petersburgo foi criado para instigar a percepção visual”. Por isso, quisemos fundir os seguintes aspectos em um só: a fotografia e as artes cênicas. Fizemos isso com os mesmos olhar de surpresa dos primeiros viajantes europeus, que, atônitos, contemplaram sua arquitetura.

Sobre essas fotografias, escreveu a diretora teatral Carlota Subirós: “Uma cidade foi criada. No entanto, mais parece um cenário. Tem um palco diferente daquele encontrado na caixa negra e ilusionista de um teatro, mas erguido sobre a amplitude quimérica de um país de vastas tundras. Em um cenário comum, o silêncio é a escuridão total; lá, porém, as noites de verão são brancas”.

“Existe algo que nos desconcerta em São Petersburgo: cada transeunte é como uma figura minúscula e solitária entre os colossais edifícios, que imaginamos vazios. Não surgiu da agitação da vida urbana nem da reunião de povos, mas da mente de governantes visionários, talvez insones. Assim, a cidade preserva a irrealidade como sua característica mais íntima. Tanto é assim que mesmo aquelas pessoas que não a conhecem sonham com ela”, completou a diretora.

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