Por uma família mais carinhosa

Caricatura:Niyaz Karim

Caricatura:Niyaz Karim

Há gerações, relação entre pais e filhos russos é apenas entre quem manda e quem obedece.

O  colapso na comunicação entre pais e filhos na Rússia já se arrasta por décadas – e começou muito antes da perestroika. Pelo menos seis gerações de russos não foram ensinadas a criar laços e se tornar amigas de seus próprios filhos.

E não me refiro ao tipo de amizade na qual não existem limites ou controle, mas a uma relação na qual os pais possam curtir e respeitar seus filhos, permitindo que a individualidade deles floresça com o passar do tempo.

Esse tipo de criação tem sido, até recentemente, ausente na relação entre pais e filhos na Rússia.

Agora, vemos apenas alguns traços dessa relação quando os pais viajam com as crianças, leem livros educativos e percebem que existem outras formas de educá-los que vão além dos métodos de antigamente.

Entretanto, ainda há uma longa estrada pela frente, a qual eu chamaria de educação saudável e feliz. Por regra, pais russos não elogiam seus filhos o suficente.

Depois de determinada idade, quando as crianças entram na escola, os pais deixam de ser afetivos no tom e na linguagem usada dentro de casa. Contudo, o primeiro passo para a vida familiar na Rússia é elogiar nossos filhos de um modo que nunca fomos elogiados quando crianças.   

Curar o trauma familiar

Para essas seis gerações russas, foi ensinado que, para educar os filhos, era preciso demonstrar poder.

Durante os tempos soviéticos, a única maneira de um cidadão do país – traumatizado, se não “assombrado”, pela presença do Estado – sentir-se poderoso era dando ordens aos mais jovens.

Os filhos estavam ali para serem controlados. Como resultado, diversas gerações foram criadas como deuses e escravos.

Não havia estímulo à comunicação entre os membros da família, e a alegria da vida familiar era completamente suprimida.

Com o intuito de estabelecer uma ligação com os filhos, os pais russos precisam começar a desenvolver a amizade assim que as crianças nascem, tendo em mente que eles não são piores por pesarem menos ou serem mais baixos. Vou ainda mais longe: as crianças são mais espertas do que os adultos!

Se você puder começar a perceber seus filhos como membros legítimos da sociedade desde o início, também será capaz de se colocar no lugar deles sem ter que ficar dando ordens. 

Assim, será possível discutir quaisquer questões que possam surgir escutando os argumentos das crianças e propondo os seus. 

Temos expectativa de que nossos filhos sejam cópias melhores de nós mesmos, ou uma espécie de troféu.

Não aprendemos que eles não devem fazer o que fazemos ou gostar do que gostamos.Esse conceito de indivíduo é praticamente inexistente na Rússia atual.

Mas o que se pode esperar de uma nação que foi privada de seus cidadãos mais instruídos, incluindo o clero, durante quase todo século 20?

O clero foi exterminado enquanto a “intelligentsia” de todos os setores foi deportada logo nos primeiros dias após a revolução.

Não acredito que se possam listar todas as razões por trás do mal-estar da família moderna. Mas isso envolve uma grande falta de confiança e, secundariamente, a incapacidade de reconhecer os sagrados direitos dos outros.

Essas são as mesmas gerações que aprenderam a tomar o que pertence aos outros.

O que os bolcheviques fizeram em 1917? Implantaram uma política de saque, ao inventarem a ideia de que a propriedade de alguém é sempre potencialmente sua.

Essa é uma das principais causas da perda da nossa moral, do nosso cinismo.

Por que estamos falhando em nos tornar um país realmente capitalista? O capitalismo se apoia em dois grandes pilares: o reconhecimento do direito sagrado de propriedade privada e a confiança.

O princípio da confiança desmoronou completamente e o direito à propriedade privada simplesmente não faz parte de nossa visão de mundo.

Na Rússia, alguns pensam que o marido alheio é uma propriedade em potencial, e o mesmo acontece com as mulheres de conhecidos.

Ainda na escola, as meninas começam a avaliar o que há no bolso dos colegas.

Vamos pegar o exemplo de uma mulher que seja jovem, atraente e casada. Na Rússia, ela pode começar a procurar um novo parceiro entre os amigos do seu marido.

Se ela entrou no casamento como uma forma de “ascensão social”, ninguém pode esperar dela fidelidade e, consequentemente, não pode haver confiança.

Ela continuará procurando um marido mais rico, enquanto seu marido poderá se encontrar com mulheres cada vez mais jovens e sexualmente atraentes, tratadas como mero objeto.

É claro que existem muitas exceções maravilhosas, os chamados românticos russos, que se casam na esperança de passar suas vidas juntos.

Esse tipo de amor e confiança existe na Rússia como em qualquer outro lugar do mundo. Mas não com a frequência necessária.

É hora de difundir a confiança, e repassá-la a nossos filhos. Antes que seja tarde demais.

Elena Zaretskaia é diretora da Escola de Ciências Sociais na Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública e criadora do conceito de “educação comunicativa na Rússia”.

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