A ameaça invisível vai ao chão

Foto:AFP/Eastnews

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Após 25 anos, a Ucrânia ainda lida com as consequências do desastre nuclear de Tchernobil, enquanto turistas debatem uma relevante tragédia.

Para entrar na zona de isolamento de 30 quilômetros ao redor da agora desativada usina nuclear de Tchernobil e conhecer o reator número 4, que explodiu na noite de 26 de abril de 1986, os visitantes precisam passar por uma barreira e mostrar uma autorização previamente emitida. Devem ainda assinar uma declaração assumindo toda a responsabilidade pelos riscos envolvidos antes de iniciar a visita ao local.

Os detectores de mão disparam e começam a marcar níveis de radiação muito acima do normal ao se aproximarem do reator destruído, agora envolto em um sarcófago gigante de concreto e aço. No entanto, os guias da agência governamental que administram e controlam a área acalmam o grupo. “A dose de radiação recebida aqui em um dia é menor que a de um raio-X no dentista”, explica Iúri Tatarchúk. Ele trabalha no local desde 1998, acompanhando jornalistas e turistas.

Embora seja seguro visitar a área, o perigo é mais traiçoeiro. A região floresce durante a primavera e é justamente aí que jaz o problema. Ao redor da zona de isolamento, que foi descontaminada logo após o acidente, há milhares de quilômetros quadrados de terra habitada em que o solo absorveu detritos tóxicos emitidos pelo reator danificado. Nos anos subsequentes, a população local foi exposta por meio da comida: cogumelos, frutas e o leite das vacas que pastam livremente no local, entre outros alimentos, são fontes de radiação. “Hoje em dia, 70% a 95% da exposição à radiação é interna, comparados aos 30% externos”, diz Valeri Kachparov, diretor do Instituto Ucraniano de Radiologia da Agricultura.

“Não temos um diagnóstico oficial, mas crianças das regiões contaminadas têm um sistema imunológico enfraquecido e comumente demonstram deficiências de crescimento”, afirma Olga Vassilenko, médica do Les Enfants de Tchernobyl, hospital francês localizado em Kiev. Ivan Nevmerzhitski, médico do hospital Lipniki, que fica na região de Zhitomir, cita dados preocupantes. “Casos de câncer de pulmão e de estômago aumentaram nos últimos 25 anos e atualmente a bronquite leva semanas para ser curada porque as pessoas não têm mais imunidade”, explica. “Em minha opinião, isso está diretamente relacionado à ingestão de comida contaminada por radiação”.

Os produtos vendidos nos supermercados são monitorados sistematicamente, com exceção daqueles vendidos ilegalmente na beira da estrada por pequenos produtores rurais. A comida consumida diariamente pelos habitantes desses locais também não é vistoriada.

De acordo com estudos feitos pelo Greenpeace em áreas como Rivnenska (localizada a quase 250 quilômetros a noroeste da usina), é possível encontrar no leite produzido nessas regiões concentrações do isótopo radioativo Césio 137 até 16 vezes maior do que o limite aceitável. Além disso, 73% das áreas de pastagem estão contaminadas. É um pensamento assustador para os visitantes de outras partes do mundo que prestam suas homenagens às vítimas e aos heróis daqueles dias, reflexão acentuada pelos eventos na usina nuclear de Fukushima, destruída por um tsunami.

Controvérsia atual

Perto do reator, hastes de metal assomam em direção ao céu. Trata-se do local em que será construído o novo sarcófago que cobrirá a atual estrutura, carente de reparos. O projeto, que desde 2007 tem sido administrado pelo consórcio francês Novarka, é tema de controvérsias. Dezenas de milhões de euros já foram investidas no projeto de uma construção que sequer foi iniciada, apesar do tempo de vida do atual modelo já se aproximar de 25 a 30 anos.

“O principal objetivo do novo abrigo era permitir o desmanche do antigo sarcófago e a extração do combustível nuclear”, explica Nikolai Karpan, que trabalhou como engenheiro-chefe da usina desde 1969, foi membro do imenso time de encarregados em liquidar as consequências do acidente até 1989 e hoje chefia o comitê de avaliação do Partido Nacional de Tchernobil.

“Esse objetivo, porém, foi completamente esquecido. O atual projeto é uma casca vazia e não pretende estabelecer um processo de desmanche, assim como não garante a proteção necessária para os trabalhadores que estiverem lá dentro. O maior perigo é de exposição interna pela inalação de poeira radioativa”, diz. De acordo com ele, mesmo 25 anos após a catástrofe, a absorção interna dessas partículas radioativas segue sendo uma ameaça contínua para os funcionários da usina, assim como para as milhares de pessoas que ainda moram nas regiões contaminadas.

Ímã de turistas

Embora ainda seja muito popular como destino de férias, Tchernobil tornou-se parte do circuito de turismo extremo. Há muitos anos, agentes de Kiev oferecem excursões para a área por preços que variam de 140 a 215 grivnas. O serviço é frugal: um ônibus leva os grupos até a barreira, onde os turistas são encaminhados à agência governamental que administra o local.

“Decidi fazer a viagem [para a zona de isolamento] para imergir no problema nuclear e passar algumas horas pensando sobre isso”, diz Ronan, um advogado americano, que estava em Kiev a trabalho. Numa excursão recente, porém, nenhum membro da agência estava presente e ninguém recebeu informações prévias, como atestam as sapatilhas de balé usadas por uma jovem canadense que nitidamente não sabia que teria que caminhar pelas ruínas radioativas de Pripyat, a cidade-fantasma localizada nas proximidades e coberta de aço retorcido, concreto e vidro.

 A excursão foi curta, com um mínimo de explicações e acompanhada pelos constantes apitos dos medidores carregados pela maioria dos visitantes. Mas o som é terrivelmente supérfluo, já que a paisagem fala por si: edifícios e ruas dilapidados, vazios desde que foram evacuados no dia seguinte ao acidente, vilas desertas e montes marcados com triângulos amarelos, nos quais as casas mais contaminadas foram enterradas.

Catálogo do desastre

A USINA

A usina nuclear de Tchernobil está localizada na Ucrânia, próximo à cidade de Pripiat, a 30 quilômetros a noroeste de Tchernobil e a 110 quilômetros de Kiev. O primeiro reator foi construído em 1977 e o quarto em 1983.

A CATÁSTROFE

A 1h23 da manhã de 26 de abril de 1986, um desligamento de 20 segundos – parte de um teste de sistema programado – foi seguido por um aumento súbito de energia no quarto reator, dando origem a uma série de explosões e a um incêndio.

AS CONSEQUÊNCIAS


O reator quatro foi destruído, liberando na atmosfera mais de 500 radioisótopos potencialmente perigosos – que, no total, formaram 190 toneladas de material radioativo. O incêndio subsequente levou duas semanas para ser extinto. O acidente expôs a população de Tchernobil a níveis de radiação até 90 vezes maiores que os gerados pela bomba de Hiroshima. A emissão mais intensa contaminou uma área de aproximadamente 30 quilômetros de raio. Mais de 160 mil quilômetros quadrados na Ucrânia, Bielorrússia e Rússia também foram afetados.

AS VÍTIMAS

No local do acidente, 31 pessoas morreram. Cerca de 600 mil trabalhadores mobilizados para “liquidar” a área receberam altas doses de radiação. Acredita-se que os efeitos da exposição causaram ou contribuíram para a morte de quase 18 mil pessoas nas duas últimas décadas, incluindo-se crianças. O exato número de mortes não foi calculado.

O FUTURO

As obras de um novo sarcófago, com 100 metros de altura e em forma de arca para acomodar o quarto reator, estão em progresso. Custeadas por 28 doadores internacionais, o abrigo deverá substituir o que foi construído em 1986. Ficará pronto em 2015 e terá vida útil de 100 anos. O último reator em funcionamento foi desativado em dezembro de 2000. De acordo com o calendário de desmanche, o combustível nuclear que permanece no reator será retirado em 2013 e os próprios reatores, entre 2045 e 2065.

O embaixador russo na Ucrânia, Mikhail Zurabov, anunciou que o país receberá uma ajuda de 45 milhões de euros para a reconstrução da estrutura que protege a usina de Tchernobil, segundo a agência de notícias Ria-Nóvosti.

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