Corrida das objeções

Foto:Kommersant

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Nos próximos dias, será definida a possibilidade de uma cooperação entre a Rússia e a OTAN (de fato, entre a Rússia e os EUA) para a criação de um sistema mundial de defesa antimíssil. Especialistas e diplomatas têm certeza de uma coisa: se esse projeto contar com a participação de Moscou, a Guerra Fria e sua corrida armamentista terão ficado definitivamente para trás; caso contrário, o conflito pode se reacender.

Realizada em novembro passado em Lisboa, a reunião de cúpula da OTAN foi considerada histórica e um sinal de uma possível aliança entre os EUA e a Rússia. O motivo foi a decisão de reunir os planos dos americanos e da OTAN de criar um sistema europeu de defesa antimíssil em um único projeto. Para Moscou, o encontro também foi um grande passo, uma vez que o presidente Dmítri Medvedev conseguiu propor aos EUA uma aliança para a construção do aparato em conjunto pelos dois países. E explicou ainda, em linhas gerais, de que maneira ele funcionará: baseado em uma divisão setorial, ou seja, cada uma das partes responde pela cobertura de determinadas possíveis rotas de foguetes. Observadores viram na iniciativa russa uma ruptura, pois o êxito desse projeto significará o primeiro exemplo na história de uma real integração do poderio militar de dois lados até então hostis.

Passados cinco meses, ficou claro que a tão alardeada ruptura envolve muitos problemas. “A situação é complexa. As partes chegaram a um beco sem saída político e diplomático”, descreve uma fonte do Kommersant para diplomacia russa, que teve acesso ao conteúdo do acordo, sobre o andar das negociações entre Moscou e a OTAN. Em suas palavras, as dificuldades estão no fato de que a Rússia insiste em ter garantias jurídicas de que o sistema europeu de defesa antimíssil não será direcionado contra o arsenal nuclear estratégico do país. E essa exigência é feita a Washington, na certeza de que o projeto é na prática apenas um segmento europeu do sistema americano de defesa. “Não existe um sistema próprio de defesa na Europa e nunca haverá”, diz com segurança um funcionário do alto escalão do Ministério da Defesa da Federação Russa. “Só existe um projeto de desenvolvimento de um sistema antimísseis americano e da sua variante europeia. Ponto.”

A existência de dificuldades também foi apontada pelo secretário adjunto do Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa Serguei Riabkov. “Moscou também deve se preocupar com a sua própria segurança. Foi por esse motivo que surgiu a proposta de um sistema setorial de defesa antimíssil. Mas o tópico das garantias jurídicas da nossa segurança caso a divisão setorial seja rejeitada também será levantado”, declarou ele ao Kommersant.

A questão é que quaisquer garantias jurídicas relacionadas ao sistema de defesa antimíssil provocam calafrios nos EUA. A administração Barack Obama informou que é irreal imaginar que um documento com essas questões seja aprovado pelo Congresso americano em anos pré-eleitorais, especialmente se for levado em conta o trabalho para concluir um novo acordo com a Federação Russa a respeito da restrição dos arsenais bélicos ofensivos, cuja introdução trata justamente da necessidade de articulá-los com o potencial defensivo – ou seja, com o sistema antimíssil.

Mas este não é de longe o ponto mais importante. A obstinação americana está acima de tudo relacionada ao fato de que, tendo abandonado dez anos atrás de maneira unilateral o acordo russo-americano de restrição dos sistemas de defesa antimíssil, firmado em 1972, Washington não pretende mais se comprometer a assinar documentos que contenham qualquer tipo de obrigação jurídica. A proposta russa de um sistema setorial não deve receber uma resposta inequívoca.

“Havíamos previsto exatamente essa reação dos americanos”, diz Riabkov, sem perder o ânimo. “Mas, para nós, a situação não muda. Estamos trabalhando para achar pontos em comum. Temos certeza de que essa ideia, se vier a se realizar, terá um caráter de ruptura e se tornará uma real contribuição para a construção das relações entre a Federação Russa e a OTAN em novas bases”.

Mas não resta muito tempo para que Moscou, Washington e a OTAN decidam como será o sistema europeu de defesa antimíssil. Já no começo do verão em Bruxelas – provavelmente, no dia 8 de junho – os ministros de Defesa dos países da Aliança se reunião com a obrigação de tomar posição sobre o projeto. Em seguida, o tema será discutido com o ministro da Defesa da Federação Russa.

Enquanto isso, a Rússia e o Ocidente debatem se é realmente necessário para a Europa um sistema de defesa antimíssil e se existem de fato as ameaças que está destinado a combater. Washington afirma que ele não é direcionado à Rússia e seu arsenal nuclear, mas sim para prevenir um possível ataque por parte do Irã. Em Moscou, porém, esse argumento não é levado a sério.

“É o que todos repetem. Mas o que o Irã tem? Foguetes com alcance de 1.800, 1.900 quilômetros. E do que eles precisam? No máximo, de 2.400 quilômetros, para chegar a Tel-Aviv (capital de Israel)”, analisa o expert do PIR (Centro de Pesquisa Políticas) e tenente-coronel reformado Evguêni Buzhinski. Em suas palavras, mesmo se Teerã quiser criar um foguete de maior alcance, isso não passará despercebido. “Não é um trabalho fácil. São necessários testes, não bastam algumas dezenas de lançamentos. O território do Irã permite testar foguetes de dois mil quilômetros de alcance. Para arriscar algo mais abrangente, eles precisariam de um território como o da Rússia, o que eles não têm, ou um atol no meio do oceano como o de Moruroa, dos franceses, ou o de Kwajalein, dos americanos. Por fim, é necessária uma estação de controle e de medição, além de satélites e navios que acompanhem os testes. E o Irã não tem nada disso!”, resume.

Moscou parece disposto a fechar os olhos para os temores imaginários em relação ao Irã se for considerado um parceiro igualitário da OTAN e dos EUA na criação do sistema de defesa antimíssil. Pelo menos é o que se conclui pelas declarações do secretário-adjunto do Ministério da Defesa da Federação Russa Anatóli Antonov, dadas na semana passada durante a reunião do grupo internacional Trialog, organizada pelo PIR. “É muito simples: devemos nos reunir e chegar a um acordo sobre a arquitetura de um sistema que vai defender a todos nós”, apontou Antonov aos diplomatas ocidentais. Caso contrário, assegura ele, quanto mais avançarem os planos americanos de defesa antimíssil, mais problemas a Federação Russa terá para garantir sua segurança nacional. Com relação ao modo pelo qual a Rússia deverá resolver seus problemas no caso de suas propostas serem ignoradas, o presidente Medvedev e o premiê Vladímir Pútin já previram inúmeras vezes uma nova corrida armamentista.

Em resposta as propostas e objeções russas, os especialistas e políticos ocidentais têm seus próprios argumentos. “Os líderes de alguns países que recentemente se uniram à Aliança terão dificuldades em explicar a seus cidadãos os motivos pelos quais a OTAN deve confiar a sua segurança a um Estado em que eles mesmos não confiam e que até mesmo consideram uma ameaça”, disse ao Kommersant Brooks Tigner, especialista de assuntos da União Europeia e da OTAN e editor da renomada revista de questões militares Jane's Defence Weekly. “Os principais argumentos contrários são a impossibilidade, determinada pelo 5° Artigo do acordo de Washington, de conceder em outsourcing a defesa da Aliança a um agente externo. E existem também as questões da compatibilidade técnica e dos custos de criação e manutenção de um sistema único de defesa nesse formato. Muitos consideram a cifra de 200 milhões de euros muito pequena. A fusão desses sistemas com o russo elevaria as despesas adicionais”.

Especialista em segurança nacional e política internacional do Centro para o Progresso Americano, Samuel Charap propõe não abandonar a iniciativa russa de um sistema setorial de defesa. “É uma ideia interessante, mas não definitiva. A proposta do presidente russo não deve ser o fim da discussão, mas sim o começo. A cooperação na esfera da defesa antimíssil é uma possibilidade de transformar um ponto delicado nas relações entre Rússia e OTAN numa verdadeira história de sucesso”, declarou Charap ao Kommersant.

Esse discreto otimismo é compartilhado pelos especialistas russos. “A probabilidade da criação de um sistema conjunto de defesa não é muito grande, mas existe. Ou seja, o que nós propusemos não é apenas um sonho. Por ser na realidade o único projeto realista e aplicável em conjunto entre a OTAN, sob a liderança dos EUA, e a Rússia, um sistema comum de defesa tem chances de vir a existir, mesmo que de maneira reduzida”, sugere o presidente do PUR Vladímir Orlov.

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