Quanto vale uma guerra?

Caricatura:Niyaz Karim

Caricatura:Niyaz Karim

O que se assiste hoje na Líbia é, a pretexto de defender a população civil do massacre das forças de Gaddafi, um verdadeiro show da indústria de armamentos

Duas décadas já se passaram desde a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Enfim, o capitalismo vencera o comunismo, a Guerra Fria chegara ao fim e começava uma nova Idade de Ouro: a primavera da paz e da liberdade dos povos até então ameaçadas pelo perigo vermelho. Não há mais ameaça vermelha, logo não há mais perigo de guerra. No entanto, se não há guerra, o que fazer da indústria de armamentos e dos bilhões de dólares gastos em pesquisas e no aprimoramento de armas de destruição em massa cada vez mais devastadoras? Eis uma questão que pouco ou nada tem preocupado a grande imprensa internacional.

Entramos na segunda década do século XXI e a tal primavera da paz prenunciada pelo fim da Guerra Fria ainda está muito além do horizonte. É bem verdade que a democracia avançou muito no mundo inteiro: a África do Sul consolidou a eliminação do nefasto regime de apartheid e a América Latina se livrou de quase todas as suas ditaduras (exceto a de Cuba), embora ainda esteja às voltas com alguns governos autoritários. No entanto, a extrema pobreza ainda continua afetando muitos povos e criando focos de instabilidade política e social nessas regiões.

O abominável ato terrorista de 11 de setembro deu início a um novo flagelo em escala internacional: o terrorismo disfarçado de heroísmo. Mas também serviu de pretexto para o início de um novo ciclo de guerras. Primeiro, houve a luta contra o regime terrorista dos talibãs no Afeganistão, que aterrorizava sua população e transformava o país em celeiro do terrorismo internacional, representado pela Al Qaeda de Osama Bin Laden (Antes, porém, não se deve esquecer que o grande país da liberdade – os EUA – apoiou Bin Laden com armas e dinheiro).

O Afeganistão é hoje um sorvedouro de vidas e um atoleiro de corrupção, mas também uma fonte que já rendeu bilhões de dólares de lucro para a indústria de armamentos. O atentado de 11 de setembro também foi um bom pretexto para uma das maiores farsas da história atual: a suposta existência de armas de destruição em massa no Iraque, que ameaçavam o resto do mundo, gerando a necessidade de se salvar o mundo invadindo o país e destruindo tal arsenal. Contudo, depois de anos de ocupação, os americanos e seus aliados não encontraram nada.

O mundo inteiro sabia que se tratava de uma farsa, mas George W. Bush, que chegara ao poder graças a uma fraude eleitoral (teve menos votos que o adversário Al Gore) e estava o prestígio político muito baixo, precisava de um pretexto para sua reeleição. A guerra contra o Iraque foi o artifício que ele encontrou para ganhar votos – e deu certo. Para tanto, ele contou com a colaboração do neofranquista espanhol José Maria Aznar, do trabalhista inglês Tony Blair e do vergonhoso servilismo do governo polonês, entre outros países.

Por trás da farsa das armas de destruição em massa, havia um argumento muito mais forte do governo americano: a sede de se apoderar do petróleo iraquiano e o interesse da indústria bélica de experimentar suas novidades no campo dos armamentos. Assim, a guerra do Iraque foi o primeiro show bélico televisivo da história e o primeiro grande marketing dos fabricantes de armas. E qual foi o custo até agora? Cálculos aproximados indicam mais de US$ 2 trilhões gastos e milhares de mortos, entre iraquianos e soldados das tropas invasoras. Alguém já leu ou ouviu falar de crise da indústria armamentista?

Eis que, de repente os povos da Tunísia e depois do Egito tomaram as ruas em luta contra a estagnação econômica, a extrema pobreza e a corrupção, exigindo liberdade e democracia. Esse movimento ganhou as ruas de outros países da África e da Ásia, estendendo-se do Iêmen ao Bahrein. Curiosamente, todas essas nações são velhas aliadas dos EUA e das velhas colônias Inglaterra e França. Se não me falhe a memória, nenhuma dessas potências cogitou qualquer ação em defesa dos manifestantes violentamente reprimidos por seus governos. Mas quando a maré libertária chegou à Líbia, a coisa mudou radicalmente de figura.

O ditador Muammar Gaddafi é uma figura execrada, envolvida com terrorismo, está há quatro décadas no poder e todos querem vê-lo fora. Acontece, porém, que, ao contrário dos outros ditadores afro-asiáticos que condenaram seus povos à estagnação e a uma pobreza quase extrema, ele colocou a Líbia no 52º lugar no mundo no índice de desenvolvimento humano, contra o 72º lugar hoje ocupado pelo Brasil de Lula/Dilma. Isto, entretanto, não o absolve.

O que hoje se assiste na Líbia é, a pretexto de defender a população civil do massacre das forças de Gaddafi, um verdadeiro show-marketing de F-16 e mísseis Tomahawk americanos, Tornados ingleses e aviões Rafale franceses, com os quais o Brasil pretende gastar cerca de R$ 5 bilhões! É uma guerra exposta para a TV do mundo inteiro, mas principalmente para eventuais compradores de armas.

A isto, se acrescenta dados nada desprezíveis: o presidente francês Nicolas Sarkozy sonha com a reeleição, mas está às voltas com sua baixa popularidade, já inferior a 30% de aprovação dos franceses. Além disso, o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi segue em franco declínio político graças a seu envolvimento com processos de corrupção e sexo com prostitutas menores de idade, o primeiro-ministro britânico David Cameron adota a tradicional política agressiva do Partido Conservador do país e Barack Obama, atual presidente americano, também pensa em reeleição. É difícil acreditar que todos eles estejam interessados na democracia na Líbia. De mais a mais, democracia não é algo que se impõe de fora, mas sim um produto da luta interna e da cultura de cada povo.

Independentemente do resultado dos conflitos na Líbia, quem pagará pelos milhões de dólares gastos com as operações de guerra externas? Certamente, o petróleo líbio. O que de fato se verifica é a imposição de uma nova ordem mundial: não gostamos de um presidente ou ditador, então vamos derrubá-lo pela força das armas de origem estrangeira. Estaríamos nós diante de uma versão mais “civilizada” e tecnologicamente devastadora da tristemente famosa política americana do Big Stick?

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