Legalizando o extremismo

O banner diz: para a lei e a ordem! / Foto: AFP_EastNews

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Se a lei russa permite acusar qualquer pessoa de incitar o ódio, como verdadeiros extremismos poderão ser descobertos?

No Código Penal russo, há o curioso artigo 282, que proíbe a incitação do ódio ou de hostilidade “baseado em sexo, raça, nacionalidade, língua, antecedentes, preferências religiosas ou por fazer parte de certo grupo social”. A punição é severa: mesmo se não resultar em violência, a penalidade por cometer um ato de hostilidade pode ser de mais de dois anos na prisão.

Isso pode parecer suficiente para pôr um fim ao extremismo no país, mas acabou levantando muitas questões complicadas. Como definir um ato de hostilidade? Atirar e escrever em paredes, por exemplo, podem ser considerados como tal? E o que significa exatamente o termo “hostilidade”? Há uma questão ainda mais difícil de explicar: o que pode ser classificado como grupo social?

Quando o artigo 282 entrou em vigor pela primeira vez, muitas coisas vieram à tona. No fim das contas, um grupo social pode se referir, por exemplo, à polícia – nesse caso, o abuso de poder contra a polícia pode ser vista como um ato de ódio contra um grupo social. Membros do Parlamento Russo são outro grupo social; assim, Iaroslav Nemchaninov, representante financeiro do Partido Comunista da Federação Russa (KPRF), pode, de acordo com essa lei, ser acusado de incitar ódio contra outro grupo social, que seria membros da Duma não-integrantes da legenda.

Segundo o Centro de Informação e Análise (SOVA), em setembro de 2010, o candidato do Partido Rússia Unida, Serguei Bachtiriov, teve negado o pedido de se registrar como postulante ao governo da Duma sob a legação de que, em sua campanha contra as escolas privadas, havia incitado hostilidade entre os grupos sociais dos pais dos alunos e dos funcionários da escola, assim como entre os jovens e os membros do Partido Rússia Unida.

Dessa forma, ferramentas de luta contra o extremismo se transformam de repente em porretes com os quais é possível atacar inimigos políticos e pessoas comuns que, por qualquer motivo, são indesejáveis. Um folheto político postado na internet, ou até mesmo um texto literário, pode ser interpretado como um ato de hostilidade contra determinado grupo social.

É de responsabilidade dos especialistas agora definir as bases do que compõem as ações que incitam o ódio e decidir quais casos se enquadram no artigo 282. Ao mesmo tempo – e os experts do Ministério da Justiça serão os primeiros a admitir – um método objetivo e consistente para atingir esse veredito não existe. O mesmo caso pode ser julgado como um ato de hostilidade ou considerado inofensivo dependendo de qual especialista for consultado a respeito.

A experiência pessoal me convenceu disso. Tive a chance de conversar com especialistas do SOVA e perguntei a eles sobre a exposição "A Arte Proibida", que parodia ironicamente símbolos da Igreja Ortodoxa. Do ponto de vista desses especialistas, não havia nada ofensivo ou que incitasse o ódio na mostra. Eu mesma não tenho grandes convicções religiosas, mas meus amigos ortodoxos, que são poucos, ficaram profundamente ofendidos e indignados. No entanto, se quem julgasse o caso fossem os especialistas, os sentimentos ortodoxos não teriam nenhum significado.

Não há consistência no modo como os termos "incitação", "ódio" e "grupo social" são tratados pela lei. Dependendo de uma opinião, um caso pode ser descartado ou resultar em um processo criminal e, até mesmo, colocar alguém atrás das grades num passe de mágica. Em outras palavras, uma lei que pretendia lutar contra o extremismo terminou por ser perigoso para a própria sociedade russa. E, acidentalmente, pode haver um grupo social por aí que considere este artigo um ato de hostilidade.

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