A imagem do tchinovnik na vida russa

Burocracia remete ao ditado brasileiro: “É na hora da confusão que o malandro mete a mão”/Foto: ITAR-TASS

Burocracia remete ao ditado brasileiro: “É na hora da confusão que o malandro mete a mão”/Foto: ITAR-TASS

Um dos maiores tradutores de literatura russa no Brasil na atualidade, Paulo Bezerra analisa a figura do funcionário público na Rússia.

Em seu empenho para modernizar o Estado,  o presidente russo Dmítri Medvedev, já tendo escolhido a desestalinização do país como fundamental para esse processo, pretende introduzir mudanças essenciais no estatuto e na atividade do tchinovnik (funcionário público, burocrata), por entender que “o tchinovnik é um servidor do povo e não o senhor do seu destino”. Trata-se de uma iniciativa importante, pois a Rússia precisa eliminar os entraves burocráticos para dinamizar sua economia e a morosidade da burocracia é um empecilho a essa dinamização.

Os tchinóvniki formam uma categoria ou casta praticamente tão antiga quanto o Estado russo e, apesar de haver em seu meio muita gente digna e abnegada, sua imagem na história do país é bastante negativa e sempre foi o objeto preferido da sátira literária.

A palavra tchinovnik deriva de tchin, que significa ordem instituída, patente militar, grau, classe funcional, etc. Antes de Pedro, o Grande, os tchinovniki eram nomeados pelo critério de sangue e linhagem, a vida do Estado não era subordinada a regras e à observância de proporções geométricas e relações lineares. Ao estruturar o Estado, Pedro criava a nobreza como classe para dirigi-lo. Com este fim, instituiu em 1722 a Tabel’ o rangakh (ou “Escala hierárquica”), que criava dezoito categorias funcionais para militares e civis, sendo as sete primeiras exclusivas dos nobres. A partir da oitava classe, pessoas sem linhagem nobre podiam exercer o serviço público na classe de assessor de colegiado, o qual recebia também a patente de major e o direito de pleitear sua inclusão na classe da nobreza.

Essa mistura de patente militar com classe funcional dava ao Estado russo uma característica burocrática muito peculiar por misturar burocracia militar com burocracia civil, instituindo o uso de uniforme-farda para o tchinovnik. O leitor que desconheça esse fato jamais entenderá por que o detentor do mais alto cargo na hierarquia burocrática do serviço público russo tinha a patente de general se seu cargo era civil.

 Tal mistura também se deve ao prestígio de que a farda e o exército gozavam na sociedade russa. Como os tsares eram militares e viam no exército o ideal de organização, a ordenação do serviço público a partir da Tabel’ o rangakh decorreu, segundo o criador da culturologia Iuri Lotman, da natureza de um poder que se espelhava na estrutura do exército. Daí sua psicologia de casta, seu arraigado corporativismo, seu autoritarismo, em suma, sua existência às vezes quase impermeável a um controle por parte do próprio Estado.  

Na consciência social russa, o tchinovnik sempre esteve associado ao uso de infinitos pormenores e formalidades para protelar e tornar extremamente confusos os processos judiciais e administrativos e assim abrir espaço para a propina, a concussão. Parece aquele ditado brasileiro: “é na hora da confusão que o malandro mete a mão”.  É claro que há exceções, mas a força da imagem negativa que ficou na história parece apagá-las.  

Quase três séculos se passaram desde a instituição da Tabel’ o rangakh. Muita coisa mudou no mundo e sobretudo na Rússia. Mas a tradição burocrático-militar deixou marcas indeléveis na história russa, e até o socialismo, cujos ideais democráticos nortearam seus fundadores, acabou degenerando num “socialismo” burocrático de caserna. Torçamos para que Medvedev consiga mudar essa tradição.

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