Um fim para os resquícios do autoritarismo

O editor-chefe da Gazeta Russa conversa com Mikhail Fedotov, novo conselheiro para direitos humanos do presidente Dmítri Medvedev.

Chefe do Conselho para Promoção de Instituições da Sociedade Civil, Fedotov é um antigo crítico do Kremlin e aderiu à campanha de Livre Escolha do opositor político e enxadrezista Garry Kasparov em 2008. Ele foi indicado ao cargo após a controvertida renúncia de sua precursora, Ella Panfilova.

-Há uma tradição de analisar os “primeiros 100 dias” de todo alto oficial. O que você espera ter realizado ao término desse período?


-Se conseguir evitar que pessoas sejam agredidas e espancadas durante os protestos da oposição na Praça do Triunfo todo dia 31, já terei conquistado uma importante vitória. Nossos líderes de direitos humanos e da oposição submeteram 12 iniciativas para aprovação, para que os protestos fossem realizados [na Praça do Triunfo] todos os meses, mas sempre tiverem suas solicitações negadas pelas autoridades de Moscou. Espero resolver esse impasse. Penso que nossa prioridade durante os 100 primeiros dias no governo e também mais tarde será transformar becos sem saída em novos caminhos. A situação da Praça do Triunfo, que é um beco sem saída, agora deve se tornar uma via de entendimento e conciliação entre público e autoridades.

-Quais são seus objetivos imediatos e quais planos traçaria para um futuro próximo?


-Nós pretendemos discutir três questões durante nosso próximo encontro com o presidente. A primeira se refere às políticas governamentais em relação a maternidade e infância, enquanto a segunda trata de reformas jurídicas e dos órgãos policiais. Como você sabe, o presidente Medvedev desenvolveu um projeto de lei sobre a polícia, que é a reforma do Ministério de Assuntos Internos. E o terceiro aspecto que planejamos discutir é a “desestalinização”. Por convenção, é o que chamamos de “desestalinização da consciência pública”. Na verdade, isso cobre uma vasta gama de problemas, incluindo a eliminação de estereótipos comportamentais e resquícios típicos de um Estado totalitário.

-Como vocês vão avaliar o sucesso da campanha de desestalinização?


-Na realidade, nós não temos planos, pelo menos agora, de renomear ruas, remover monumentos e destruir todos e quaisquer símbolos que representem nosso passado totalitário. Pelo contrário, queremos começar construindo. Queremos que as pessoas relembrem as vítimas do regime de Stalin e que ergam monumentos em sua homenagem; que ruas sejam batizadas com seus nomes; que museus sejam construídos em sua memória. Acreditamos que esse movimento será muito útil para educar a sociedade, especialmente os jovens, porque eles devem saber a verdade sobre o passado. Pesquisas de opinião mostrarão o quão satisfatório é o nosso programa,  ajudando-nos a decidir se devemos seguir em frente ou não.

-A  imprensa  internacional ocidental afirma que a Rússia é um dos países mais perigosos para jornalistas, e as investigações sobre assassinatos de profissionais de imprensa caminham a passo lento no país. O que deve ser feito para assegurar mais proteção aos jornalistas? O que se sabe até o momento sobre a investigação das mortes de Politkovskaia e Estemirova?


-Antes de me tornar conselheiro presidencial, fui diretor do Centro para Jornalistas em Situações Extremas da União de Jornalistas da Rússia. Lidei com todos os tipos de caso envolvendo ataques a jornalistas, perseguições e demissões, e todo caso em que seus direitos tenham sido violados. Infelizmente, as investigações de mortes de jornalistas são realmente muito fracas, mas não acredito que as autoridades estejam agindo assim de propósito. Esse tipo de crime é bastante complicado, muito difícil de investigar, e as autoridades podem fazer muito pouco – se é que podem fazer alguma coisa –, ainda que queiram aprofundar a investigação de tais histórias. Acho que as autoridades querem saber a verdade, mas hoje não são mesmo capazes de desvendá-la. As coisas se tornam ainda piores pelo fato de nossos órgãos policiais terem simplesmente esquecido como fazer seu trabalho. Eles só mostram vontade de se mexer quando têm algum interesse envolvido.

-Em outras palavras, isso não tem a ver apenas com jornalistas, mas com os órgãos policiais de um modo geral?


-Sim, este é um problema geral. Sei de casos em que oficiais estipularam um preço às vítimas para que criminosos fossem encontrados. “Pague-nos e nós o encontraremos.” Acredito que isso mostra claramente o quão vergonhoso se tornou o nosso sistema policial. Infelizmente, a corrupção não é exclusiva deste setor; ela corrói o governo por dentro. Este é o maior mal que existe na Rússia atualmente.

-Falando do sistema de aplicação de leis em geral, o que você irá fazer em relação aos órgãos policiais?


-Em nosso próximo encontro com o presidente pretendemos levantar um grande número de questões referentes a reformas judiciais e dos órgãos policiais. Durante tais discussões iremos fazer propostas de como tornar a aplicar as leis de modo mais efetivo, transparente e palpável. Por exemplo, vou sugerir que o projeto de lei sobre os órgãos policiais do presidente vislumbre a criação de uma comissão independente para lidar com reclamações contra a polícia. Existe algo semelhante no Reino Unido, onde diversos investigadores recebem reclamações contra o órgão análogo. A ideia é desassociar o famigerado sistema de segurança interna do Ministério de Assuntos Internos, tornando-o um órgão independente do governo, embora financiado pelo Estado.

-Muito se discutiu recentemente sobre o excesso de poder do FSB (Serviço de Segurança Federal, sucessor do KGB) e do Ministério do Interior, no que se refere à luta contra o extremismo. O que o senhor entende por extremismo? Insatisfação e protestos públicos podem ser vistos como ações extremistas?


-Por extremismo, entendo qualquer ação que tenha a ver com violência ou ameaça de violência, que coloque em risco a vida e a saúde das pessoas. Oliver Wendell Holms, juiz da Suprema Corte americana, disse certa vez que não se deve gritar “fogo” em uma sala de cinema superlotada, pois isso poderia causar pânico e caos, e pessoas poderiam morrer no tumulto que sucederia tal fato. Gritar “fogo” com o intuito de causar pânico é extremismo. Capotamento de carros, quebra de vitrines e violência física a um passante também são atos de extremismo porque envolvem violência, independentemente dos argumentos usados para justificar os acontecimentos. Infelizmente, as leis que se referem à “luta contra atividades extremistas” não se baseiam nesse conceito, oferecendo uma definição bastante ampla do termo, que vai desde a difamação de funcionários públicos a terrorismo. Não entendo como acontecimentos como o 11 de Setembro e a difamação de funcionários municipais possam ser analisados sob uma mesma perspectiva. Portanto, veremos como é possível amenizar as diretrizes que se referem à “luta contra atividades extremistas”. Eu já venho lidando com essa questão há oito anos, mas, até o momento, ela pouco evoluiu. No entanto, durante esses anos passados eu não era conselheiro presidencial.

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