Ajuste de contas com a história

Niyaz Karim

Niyaz Karim

À medida que a jovem e ainda frágil democracia avança na Rússia, o governo dá sinais de que o processo veio para ficar, e toma medidas no sentido de seu aprofundamento e sua consolidação. O presidente Dmitri Medvedev, que se elegeu à sombra e como criação de Vladimir Putin, vai se mostrando cada vez mais um político habilidoso, distanciando-se do seu criador numa série de questões e chegando inclusive a divergir dele no tocante à modernização do sistema político.

Duas recentes medidas tomadas por Medvedev ilustram bem as diferenças que o separam de Putin, bem como sua preocupação com os destinos do país: o pedido de desculpas à Polônia pelo funesto massacre de Katin e a decisão de promover a desestalinização do país, coisa que sequer passou pela cabeça de Putin durante seus oito anos de governo.

Em 1940, 20 mil poloneses, entre eles um grande número de oficiais do exército, foram fuzilados, a mando do próprio Stalin, por soldados do NKVD (Naródni Komissariat Vnútriennikh Diel — Comissariado do Povo para Assuntos Internos) como cumprimento do acordo Molotov-Ribbentrop. O governo soviético sempre atribuiu essa carnificina à Alemanha nazista. Com o reconhecimento desse fato nefasto, Medvedev dá um importante passo no sentido de apagar uma terrível nódoa da história do país.

A desestalinização da Rússia, se levada a cabo sem escamoteação nem revanchismo, poderá ter um profundo alcance político, histórico e psicológico. Isso porque certamente implicará numa mudança de paradigmas na interpretação da própria história da Rússia de antes e durante a existência da URSS, além de mexer a fundo com o psiquismo de uma grande parcela da população que até hoje venera Stalin e não acredita nos crimes a ele atribuídos.

Tornou-se rotina atribuir os crimes de Stalin à natureza do bolchevismo. Isto se deveu aos exageros autoritários que levaram à degenerescência dos ideais da Revolução de 1917, predominantemente depois da ascensão de Stalin à liderança do processo político, e decorre também da própria personalidade de Stalin. Mas as raízes do stalinismo estão na própria história violenta da Rússia, desde os tempos de Ivan, o Terrível. Aliás, sociólogos e historiadores do stalinismo vêm reiterando que Ivan e Hitler eram os dois estadistas que Stalin tomava como modelos. Já existe uma vasta documentação que comprova as simpatias de Stalin por Hitler.  Quanto a Ivan, Stalin estimulava escritores, cineastas e historiadores a reabilitarem a figura histórica para seus contemporâneos.

O NKVD e depois a KGB de Stalin se espelharam, e muito, na famigerada oprítchnina, tropa especial de Ivan cuja função era espionar, prevenir e esmagar qualquer tentativa de rebelião ou traição. A oprítchnina era dirigida por Maliuta Skuratov, um dos raros homens que gozava da total confiança de Ivan. Em fins de 1569, chegou ao tsar a denúncia de que os habitantes do principado de Novgorod desejariam colocar-se sob a autoridade do rei da Polônia, “eliminar” o tsar e substituí-lo pelo príncipe local Vladimir Andreievitch. Ivan resolveu punir exemplarmente o principado de Novgorov e enviou Maliuta Skuratov à frente da oprítchnina para isso. Assim, entre 6 de janeiro e 13 de fevereiro de 1570, a oprítchnina lançou diariamente de 600 a 1,5 mil pessoas em um rio com temperatura de -40° C. Stalin considerava Maliuta Skuratov um grande chefe militar e prestigiava o papel histórico da oprítchnina.

A oprítchnina estimulava o denuncismo e era movida pela desconfiança de qualquer pessoa, mesmo que fosse íntima. Essa desconfiança logo se transformava em hostilidade.  O mesmo se pode dizer de Stalin e seu regime. O acordo com Hitler lhe permitiu amputar uma parte do território polonês. Com sua síndrome de desconfiança e eliminação, ele não podia aceitar uma oficialidade potencialmente capaz de pensar diferente dele, e inclusive de rejeitá-lo, e resolveu se antecipar, eliminando todos.

Era uma cópia atualizada de Ivan. Assim, o massacre de Katin tem ramificações no episódio de Novgorod, na própria história da Rússia.

A tarefa de Medvedev é das mais árduas. Desestalinizar a Rússia implica em mexer fundo no psiquismo de uma grande parcela da população, educada sob o totalitarismo. Esse regime criou um novo tipo psicológico, habituado a exaltar o papel de um indivíduo isolado na história, a esperar que todas as iniciativas minimamente relevantes venham de cima e a delegar a outros até algumas de suas vontades essenciais.

Se recorrer a procedimentos democráticos, permitindo e estimulando uma imprensa independente e livre, Medvedev certamente contribuirá para livrar a sociedade russa do stalinismo e de outras formas de autoritarismo radicadas na história e na cultura do país. Assim, poderá criar algo que a Rússia nunca conheceu ao longo de sua história: uma sociedade efetivamente civil. Mas é bom não esquecer o quase axioma: “rússkomu narodu bez tsariá nie jit” (em português, “para o povo russo, é impossível viver sem tsar”).

Não obstante, neste momento discute-se na Rússia a renovação do sistema político, e Medvedev se permitiu divergir de Putin. Enquanto este defende um “conservantismo saudável” em torno do partido governante Edinaia Rossia (Rússia Unida), Medvedev defende a interação com todos os partidos, independentemente do seu número de eleitores. Trata-se de uma posição democrática, e espera-se que ela se aprofunde e se consolide para que a Rússia finalmente ajuste as contas com sua história autoritária.

Paulo Bezerra é vencedor do prêmio da ABL para tradutores e articulista em diversos veículos de imprensa

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