O inverno russo na literatura

A dureza do inverno russo é lendária, mas os escritores e poetas revelam sua beleza e romanticismo em novelas clássicas, contos e poesias.

Cada estação do ano inspira a seu próprio modo escritores e poetas. Mas o inverno teve um efeito único: o silêncio tilintante, o brilho da neve, os sinos de uma troika correndo a toda, o ranger das pás e o som crocante das pisadas - quase todo clássico russo descreveu esses.

A peculiaridade do caráter russo se manifesta no amor ao inverno: a falta de sonhos, a ausência de pensamentos, o desapego, a existência em algum lugar "além", em algum tipo de conto de fadas meio dormente. Ao mesmo tempo, a prontidão a lutar contra a natureza ao redor - as nevascas, as tempestades de neve, o frio voraz - compôs a disposição de espírito nacional russa, tornando-a mais forte e completa.

E, claro, o inverno é tempo de contos de Natal e histórias mágicas.

1. Aleksander Púchkin, "A Nevasca" (em "Contos de Belkin")

Troika no inverno. 1888

Uma tempestade de neve interfere no destino dos protagonistas de Púchkin em "A Nevasca", mudando suas vidas. A heroína não consegue se casar com seu noivo, que está preso em uma tempestade de neve na véspera do casamento e não consegue encontrar o caminho para a igreja.

"Vladímir passou com dificuldade das margens da cidade aos campos, porém, quando o vento aumentou e transformou-se em tal tempestade que tornou-se impossível ver qualquer coisa. Dentro de minutos a estrada estava completamente coberta de neve; os arredores desapareceram em uma neblina escura amarelada, através da qual voavam flocos de neve. O céu e o chão se fundiram. Vladímir, que se encontrava no campo, tentou, em vão, voltar à estrada; seu cavalo avançou a esmo de novo e de novo, fazendo agora seu caminho sobre um banco de terra, e agora caindo em um buraco. De novo e de novo o trenó virou. Vladímir se focou apenas em não perder o caminho verdadeiro. (...) A tempestade não diminuía, o céu não clareara. O cavalo começou a ficar cansado; o suor de Vladímir vinha denso e pesado, apesar  de ele ter gradualmente se afundado até a cintura na neve."

2. Nikolai Gógol, "A noite de véspera de Natal" (em "Noites na Granja ao Pé de Dikanka")

Ilustração de 1949 para publicação com o conto de Gógol. Reprodução.

Aqui, o protagonista,usando o recurso da cura dos espíritos do mal, consegue conquistar o coração de seu altivo amado.

"O último dia antes do Natal acabara de se encerrar. Uma noite clara de vento chegou, as estrelas apareceram, e a lua se ergueu de maneira majestosa nos céus para brilhar sobre os homens bons e o mundo em sua totalidade, para que eles pudessem cantar alegremente cânticos e hinos louvando o nascimento de Cristo. A geada aumentou, tornando-se mais severa durante o dia; mas, para compensar, tudo ficou tão imóvel que o quebradiço da neve sob o pé podia ser ouvido a quase meia versta. Ainda não havia um só grupo de jovens camponeses  para serem vistos sob as janelas dos chalés; só a lua os espreitava furtiva, como se convidasse as donzelas, que estavam se embelezando, a andar depressa e correr sobre a neve quebradiça. De repente, para fora da chaminé de um dos chalés, volumes de fumaça subiam rumo aos céus, e, no meio dessas nuvens, subia, em uma vassoura, uma bruxa."

3) Anton Tchékhov, "Vanka"

Cartão postal pré-revolucionário com ilustração do conto

Em outra história que ocorre na véspera de Natal, um menino órfão de nove anos de idade escreve uma carta a seu avô, que está na aldeia, e lhe pede que o leve de Moscou, onde ele é mal tratado. Mas o meninos esquece de colocar o endereço no envelope, indicando apenas "Para a vila do vovô...".

"O ar sereno, transparente, fresco. Era uma noite escura, mas a vila inteira, com seus telhados brancos, a fumaça subindo das chaminés, as árvores prateadas da geada, os montes de neve, podiam ser vistos de forma distinta. O céu estava salpicado com estrelas cintilantes, a Via Láctea se destacava claramente como se tivesse sido esfregada recentemente para o feriado e polida com neve..."

4. Ivan Turguêniev, "Pais e Filhos"

Aleksêi Savrasov. Inverno

O mestre da descrição de paisagens Turguêniev também não resistia à beleza do inverno russo.

"Passaram-se seis meses. O branco inverno instalou a cruel imobilidade das geadas sem nuvens, com sua neve crocante, o gelo róseo sobre as árvores, o céu de uma cor esmeralda esmaecida, a grinalda de fumaça se enrolando sobre as chaminés, o vapor emergindo das portas momentaneamente abertas, com aqueles rostos frescos que pareciam mordidos pelo frio; a noite fria penetrava aguda pelo ar sem movimento, e o por do sol brilhante esmorecia rapidamente." 

5. Lev Tolstói, "Anna Kariênina"

Ilustração para

A natureza furiosa de Tolstói admoesta o homem sobre suas dificuldades iminentes, expressando sua condição interna e pré-determinando seu destino. Assim, antes de seu primeiro encontro com Vrônski, Anna se vê em uma terrível nevasca.

"Ela abriu a porta e saiu. O vento parecia estar deitado esperando por ela; com um assobio alegre tentou arrebatá-la e ganhá-la, mas ela se agarrou à batente gelada, e segurando sua saia desceu para a plataforma e sob o abrigo dos vagões. O vento foi poderoso nos degraus, mas na plataforma, sob o abrigo dos vagões, havia uma calmaria. Com regozijo, ela tomou fôlego no ar congelado e nevoso, e, parando próxima ao vagão, olhou em torno da plataforma e da estação iluminada.

A tempestade veloz arremetia assobiando entre as rodas dos vagões, em torno dos andaimes, e na curva da esquina da estação. Os vagões, postes, pessoas, tudo o que podia ser visto estava coberto de neve de um lado e estava ficando cada vez mais e mais densamente coberto. Por um momento, viria uma bonança na tempestade, mas então ela seria assolada novamente com tais golpes que parecia impossível se colocar contra. (...) E agarrando-se à batente gelada, ela escalou os degraus e chegou rapidamente ao corredor do vagão. Mas no pequeno corredor ela parou, examinando em sua imaginação o que acontecera."

6. Aleksêi Tolstói, "A infância de Nikita"

Costa abrupta do rio no inverno.

Um menino chamado Nikita se lembra de como ele viveu, certa vez, em uma aldeia. O romance retrata os jogos gelados e tranquilos de infância.

“Nikita desceu os degraus quebradiços do alpendre. Na parte de baixo havia uma pinha bem nova, transportada em um trenó com uma corda de fibra amarrada nela. Nikita olhou - era feito de maneira sólida -, ele testou e ela escorregou facilmente; ele laçou o trenó sobre seu ombro, pegou uma pá da qual pensou que pudesse precisar e percorreu o caminho em toda a extensão do jardim ao açude. Lá havia enormes salgueiros - eles quase alcançavam o céu - todos carregados de geada, de maneira que cada broto parecia ser feito de neve.

Nikita virou-se para a direita, em direção do rio e tentou se manter na estrada, seguindo as pegadas de outras pessoas.

(...)

Nos bancos íngremes do rio Tchagra, montes enormes e fofos de neve tinham se acumulado durante os últimos poucos dias. Em alguns lugares, eles formaram promontórios que se projetavam do rio. Se você ficasse de pé em um desses promontórios, a neve cederia, desmoronaria e toda a montanha de neve tombaria em uma nuvem de pó branco."

7. Boris Pasternak, Doutor Jivago

Serguêi Vinográdov. Rua de Moscou, 1922.

O frio severo do inverno de Pasternak contrastava com o calor das relações humanas, que está impregnado pela luz do fogo e das velas que vaza pelas janelas. Essa luz nos acalma e nos dá esperanças de que a primavera chegará definitivamente depois do inverno.

"Somente agora, quando ela saiu pela segunda vez, olhou em volta de si. Era inverno. Era a cidade. Era noite.

Fazia um frio cortante. As ruas estavam cobertas com uma camada de gelo grossa, negra, como o fundo das garrafas de cerveja. Doía para ela respirar. O ar estava denso com um granizo cinza e coçava e picava seu rosto como as cerdas cinzas congeladas de sua capa de pele. O coração golpeando, ela andou pelas ruas desertas, passando as portas que soltavam vapor das lojas de chá baratas e restaurantes. Os rostos vermelhos como salsichas e as cabeças de cavalos e cachorros com barbas de pingentes de gelo emergiram da névoa. Uma crosta densa de gelo e neve cobria as janelas, e os reflexos coloridos de árvores de Natal acesas e as sombras dos foliões se movia através de suas superfícies branco-giz opacas como nas telas de lanterna mágica; eram como shows sendo feitos para o deleite dos transeuntes."

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