Nuvem dourada (1918), Vassíli Kandínski
DivulgaçãoFoi depois de uma viagem a Minas Gerais, em 1944, que o pintor Alfredo Volpi foi deixando o casario de lado, como tema de suas pinturas, e passou a focar em elementos das fachadas das casas, privilegiando as formas geométricas cromáticas, até chegar ao predomínio das suas populares bandeirinhas juninas coloridas.
Esse movimento em direção a um abstracionismo geométrico dificilmente teria sido possível sem Vassíli Kandínski (1866-1944), o inventor do abstracionismo moderno.
O ponto de virada na vida de Kandínski também está numa viagem, em 1889. Nascido na Rússia, Kandínski era professor de direito quando, aos 30 anos, transferiu-se para Munique, a fim de estudar arte.
Por causa das duas Guerras Mundiais, voltou à Rússia, depois perambulou por algumas cidades da Europa, até se estabelecer por último nos arredores de Paris, onde morreu como cidadão francês.
Outono (1901-1903) Foto: Divulgação
Mas foi em uma viagem, em 1889, a Vologda, 450 km a leste da capital, que o artista mudou sua concepção de pintura, agregando elementos cada vez mais abstratos.
Por onde passou deixou um rastro de originalidade e influências. Em seu currículo está a participação no grupo “O cavaleiro azul”, o magistério na Bauhaus e a elaboração de diversas obras teóricas, entre elas “Do Espiritual na Arte”.
Parte dessa trajetória é o tema da exposição “Kandínski – Tudo Começa num Ponto”, com a curadoria de Evguênia Petrova e Joseph Kiblitsky, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo, até o dia 28 de setembro.
Russo da gema
“A exposição traz à tona uma imagem de Kandínski que foi sequestrada pelo imaginário ocidental, como se o pintor fosse um francês ou um alemão, e não um russo profundamente vinculado à sua cultura”, explica o diretor geral do evento, Rodolfo de Athayde.
Para ele, esta não é a única surpresa que aguarda o visitante do CCBB. A imagem de um artista sempre obcecado pela geometria também cairá por terra.
Improvisação No 11 (1910) Foto: Divulgação
“Dos quadros da exposição, praticamente nenhum prima pelo uso das formas geométricas. Kandínski não se limita a esses elementos, ele quase sempre usa outros que não engessam a composição e imprimem movimento nela”.
A mostra reúne 153 obras e objetos – a maioria datada do período entre 1900 e 1920 -reunidos a partir do acervo do Museu Estatal Russo de São Petersburgo e de 8 museus do interior da Rússia, além de coleções espalhadas pelo mundo.
“Uma das ideias fundamentais era trazer o Kandínski das fontes primeiras de sua criação e deixar claro o processo de amadurecimento do abstracionismo, que se deu nesse período”, completa Athayde.
Foi a partir de uma viagem a Vologda, no noroeste da Rússia, que Kandínski tomou contato com manifestações da cultura popular que o sensibilizaram profundamente, em especial os movimentos e a espiritualidade dos rituais xamânicos locais.
A partir daí, desenvolveu uma concepção mística da arte, que ansiava por uma ligação entre o homem e o divino. Com um pé no real, outro no sobrenatural, passou a diluir cada vez mais as formas em seus quadros, a fim de captar a essência espiritual dos objetos.
Espectadores das nuvens
Para o historiador da arte Denis Bruza Molino, a exposição no CCBB refaz com o visitante o caminho percorrido por Kandínski desde o pós-impressionismo de paisagens borradas, associado a um simbolismo de espiritualidade ligada ao mundo eslavo, até o abstracionismo.
Segundo ele, no período entre 1900 e 1920, Kandínski passa por um processo, comum às vanguardas, de crítica à representação do real. Dessa maneira, chega a uma arte que vai apagando os objetos materiais até praticamente prescindir deles, produzindo uma “pintura sem objeto, que não imita nada de reconhecível no mundo comum”.
No branco (1920) Foto: Divulgação
Assim, no lugar de uma casa, o quadro apresenta formas volúveis, abstratas e com tons inusitados, que convidam o espectador a utilizar sua potência associativa para montar a própria interpretação.
Molino explica que o abstracionismo faz perder “a referência fácil do objeto, que funciona como uma muleta [para o espectador]”. Sem um objeto facilmente identificável, e diante de formas indefinidas, somos levados a uma espécie de estado lúdico infantil, como se, deitados no chão, observássemos nuvens e pensássemos no que elas nos sugerem.
A proximidade desse tipo de pintura com a música, também imaterial e evocatória, é quase irresistível, e bastou a Kandínski assistir a um concerto de Arnold Schönberg para que uma amizade entre eles nascesse, junto com os experimentalismos na fronteira entre a música e a pintura.
A exposição
O diretor geral Rodolfo Athayde explica que, em vista da distribuição das obras por vários andares no prédio do CCBB, foi preciso “criar zonas temáticas para dar coerência aos espaços”.
Assim, a exposição – que pode ser guiada a partir de um aplicativo de celular (leve seus fones de ouvido) - foi dividida em temas como os simbolistas, os abstracionistas, os xamanistas, a relação de Kandínski com a arte popular russa e com o folclore.
Amazona com leões azuis (1918) Foto: Divulgação
Para a exposição do CCBB foram reunidos objetos e obras não apenas de Kandínski, mas de muitos que o influenciaram e foram por ele influenciados. Entre as expostas, estão quadros de Pavel Filonov, Aristarkh Lentulov, Nikolai Milioti, Mikhail Larionov, Alexej von Jawlensky e Arnold Schönberg, entre outros.
Além de um filme mudo codirigido pelo próprio Kandínski, passando por pinturas em vidro e até um jogo de xícaras pintado pelo artista, também integram a exposição objetos como espadas e amuletos xamânicos, ou uma têmpera do século 16 com a imagem de São Jorge e a cópia de “O Pássaro Celestial”, gravura que enfeitou o apartamento do artista em Munique.
“Os objetos de arte popular da exposição são muito similares aos objetos que Kandínski colecionava e é uma forma de criarmos um vínculo com sua experiência e trazê-la para a contextualização de sua obra”, diz Athayde.
Foi a partir de objetos como os reunidos no CCBB que Kandínski criou um mundo à parte, em tudo particular dentro da pintura, onde o assunto é a própria pintura. Para expressar isso, ele até cunhou a seguinte frase: “Pintar é detonar um choque de mundos diferentes”.
Imersão
A proposta da exposição também é mergulhar o visitante em uma experiência sensorial nesse mundo proposto por Kandínski.
Por isso, antes de deixar o prédio histórico, é imprescindível checar a “sala imersiva”, ambiente delimitado por cortinas no saguão principal do CCBB, no qual se penetra vestindo um óculos de realidade virtual 3D que permite adentrar o quadro “No Branco”.
Nuvem Branca (1918) Foto: Divulgação
A experiência de transitar “dentro” de uma pintura leva as pessoas a perderem a noção do que é o mundo fora daquele quadro. Por uns poucos minutos, ficam mergulhadas em outra realidade, a realidade da pintura de Kandínski.
Olhando para cima, procurando ansiosos as imagens reveladas pelos óculos especiais, os visitantes acabam lembrando muito as crianças nas suas primeiras experiências abstracionistas, encantadas a observar as formas das nuvens.
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