Noveleiros a la soviética

"O clone" quase se equiparou em audiência a "Escrava Isaura". Se, sob influência da última, a palavra "fazenda" entrou para o vocabulário russo, a primeira levou russas a buscar aulas de dança do ventre.

"O clone" quase se equiparou em audiência a "Escrava Isaura". Se, sob influência da última, a palavra "fazenda" entrou para o vocabulário russo, a primeira levou russas a buscar aulas de dança do ventre.

Reuters
Durante a perestroika,"Escrava Isaura" abriu caminho para novelas brasileiras, que têm espaço até hoje no país. Há rumores de que até uma reunião do Parlamento tenha sido abreviada para que os presentes pudessem assistir ao último capítulo em 1988.

Em 1988, durante a perestroika, a televisão soviética transmitia pela primeira vez uma novela. "Escrava Isaura" ganhou enorme popularidade e abriu a era das telenovelas latino-americanas no país.

O sucesso era tanto que, durante as transmissões, não só as ruas ficavam desertas, com lojistas baixando as portas para correr para a frente da telinha, como há rumores de que até uma reunião do parlamento tenha terminado mais cedo por conta do último capítulo da novela.

“A produção foi bem recebida pelo público soviético. Os telespectadores do país que mais lia no mundo, conheciam, claro, a escravidão e já tinham lido o romance 'A Cabana do Pai Tomás', de Harriet Beecher Stowe. Além disso, os soviéticos recebiam uma educação internacionalista, graças à qual o sofrimento dos escravos negros despertava verdadeira compaixão, apesar de Isaura fosse uma escrava branca”, diz a professora do departamento de rádio e televisão da Universidade Estatal de Moscou, Galina Peripêtchina.

“Mas o grande interesse gerado estava mais ligado ao fato de que a televisão soviética ainda não tinha mostrado histórias de cortar o coração como essa”, acrescenta.

A dona de casa Tatiana Kuznietsova, 67 anos, de Novossibirsk, na Sibéria, conta que não sabia quase nada sobre o Brasil e sua história, mas se apaixonou por Isaura desde o início as transmissões.

"A novela era muito bonita, os atores bem-apessoados e a natureza, bela. Era um conto de fadas para adultos, algo raro e muito necessário naqueles tempos difíceis”, diz.

"Escravas" soviéticas

As mulheres soviéticas, que tinham que trabalhar fora, cuidar da casa e criar os filhos, acabaram se identificando com a escrava branca Isaura.

Isaura Foto: kinopoisk.ruMulher soviética se identificava com a escrava branca Isaura Foto: kinopoisk.ru

A repercussão era tanta que um dos apresentadores de TV mais celebrados da Rússia contemporânea, Leonid Parfionov, chegou a escrever sobre o assunto.

“A novela ‘Escrava Isaura’ foi uma mãozinha dos brasileiros às donas de casa soviéticas, escravas da vida de então. Era uma anestesia, uma sessão nacional de psicoterapia nos duros anos derradeiros do socialismo”, escreveu o jornalista e ativista Leonid Parfionov em sua coleção de livros-reportagens “Aconteceu ontem. A nossa era” (em tradução livre do russo "Namedni. Nasha era").

Ainda sem tradução para o português, os tomos são, dedicado à história televisiva e da cultura popular russo-soviética e cobrem dos anos 1970 até 2010.

Lerê-lêre

A expressão “trabalhar como a escrava Isaura” e a palavra “fazenda” foram incorporados para sempre à língua russa.

Depois do início das transmissões de "Escrava Isaura", os soviéticos passaram a chamar suas "datchas" (casas de campo de temporada, muitas vezes, simples chalés de madeira) de "fazenda", de maneira, para eles mesmos, cômica.

Tanto crianças nascidas naquele final de década, como bichinhos de estimação ganharam os nomes de Isaura e Leôncio.

"Minha mulher até queria batizar a nossa filha como Isaura, de tanto que gostava da novela. A gente assistia junto, e acabei tomando uma certa simpatia pelo Leôncio, apesar de ele ser um canalha. Mas, no final das contas, consegui tirar a ideia da cabeça da minha mulher, e nossa filha se chama Olga", conta o engenheiro moscovita Vladímir Beliaiev, 57.

O nascer de uma tendência

Isaura conquistou o coração não apenas de milhões de soviéticos, mas também dos camaradas da Europa socialista. “Na Hungria, os piedosos telespectadores chegaram a fazer uma vaquinha para comprar a escrava”, conta Galina Peripêtchina.

Depois da transmissão, canais soviéticos e russos ainda mostraram diversas outras produções brasileiras.

Entre 1985 e 2000, os canais da TV aberta exibiram cerca de 20 novelas: de melodramas clássicos a comédias. "Mulheres de Areia" e "A Próxima Vítima" tiveram sucesso ímpar, e incentivaram a criação de concursos para levar os telespectadores ao Brasil.

Mas o verdadeiro boom aconteceu no início dos anos 2000, quando as produções ganharam o horário nobre do Primeiro Canal ("Piérvi kanal: Terra Nostra, Laços de Família, Esperança estreavam uma atrás da outra.

A audiência na TV de "O Clone" quase se equiparou à de Escrava Isaura - em uma época em que a internet já começava a roubar telespectadores.

Sob influência dessa, a dança do ventre e as decorações de temática árabe entraram na moda na Rússia moderna.

Em 2005, "Escrava Isaura" ganhou reprise no formato original e sem cortes. O sucesso, claro, não foi o mesmo de 1988, mas existiu.

Em 2006, a televisão russa interrompeu as transmissões de novelas brasileiras para tentar se dedicar à produção própria, mas em 2013 voltou a transmitir "Avenida Brasil". Apesar do sucesso nacional, a transmissão em horário ingrato não vingou com a audiência, e, após 50 episódios, foi interrompida.

Centenas de telespectadores acabaram enviando uma enxurrada de cartas em protesto ao canal, mas ele não cedeu.

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