Músicos eruditos brasileiros afinam o dom na Rússia

Wendell Kettle, 39, foi aceito pela Royal Academy, em Londres, mas optou pelo doutorado em regência no Conservatório Rímski-Korssakov, em São Petersburgo Foto:Press Photo

Wendell Kettle, 39, foi aceito pela Royal Academy, em Londres, mas optou pelo doutorado em regência no Conservatório Rímski-Korssakov, em São Petersburgo Foto:Press Photo

Com ou sem subsídio, artistas buscam cada vez mais conservatórios de Moscou e São Petersburgo para se especializar.

Quando a ópera Eugene Oneguin, de Tchaikovsky, estreou no Theatro Municipal no último dia 30 de maio, o alto nível técnico e musical do espetáculonão surpreendeu o público e a crítica.

A montagem em São Paulo do libreto de John Cranko, baseado no romance homônimo de Aleksandr Púchkin, reúne grandes nomes, desde os solistas - muitos russos e de outros países da ex-União Soviética - até os bastidores.

Para participar da produção, o pianista preparador do espetáculo, Paulo Almeida, por exemplo, não se contentou apenas com premiações em concursos como o Grieg-Nepomuceno e o Nelson Freire, além de bacharelado e mestrado em música pela USP. Aperfeiçoando-se para Eugene Onegin, Almeida viajou até Moscou para uma especialização, que cursou de novembro do ano passado até janeiro no Conservatório Tchaikovsky.

"Sempre tive muita afinidade com a música russa e, quando soube que faríamos uma das minhas óperas prediletas, pensei: tenho que aprender isso direito, direto da fonte", disse à Gazeta Russa.

Almeida não foi, porém, pioneiro: diversos de seus conterrâneos escolhem têm escolhido o país para se especializar em música erudita. Baseado hoje em Bruxelas, na Bélgica, o pianista vencedor do primeiro Concurso Nelson Freire, Pablo Rossi, de 26 anos, foi um dos que buscaram a capital russa para afinar a formação.

Estudando em Curitiba desde os oito anos de idade com a russa Olga Kiun, Rossi e sua professora entraram em contato com a pianista russo-georgiana Elisso Virssaladze, hoje uma das principais tutoras de músicos eruditos brasileiros na Rússia, durante uma apresentação que essa fazia com a Orquestra Filarmônica de São Petersburgo na Sala São Paulo.

"Não imaginávamos que eu estudaria com ela em Moscou, porque a gente achava que eu era muito jovem e não teria um professor tão célebre e de nível tão avançado. Mas tive a sorte de ela mostrar certa vontade de me aceitar como aluno", conta Rossi.

Em 2006, aos 17 anos, Rossi partiu para a capital russa, onde concluiu o bacharelado e o mestrado no Conservatório Tchaikovsky. No país, chegou a atuar como solista frente à Orquestra de Câmara do Kremlin e à Orquestra Sinfônica de Kirov.

O chefe do setor cultural da embaixada brasileira da embaixada do Brasil em Moscou, Igor Germano, conta que não existem números oficiais, mas a média de brasileiros que o procuram desejosos de aperfeiçoar seus conhecimentos na Rússia tem sido de até dez músicos por ano.

"Quando jovens artistas como o pianista Pablo Rossi vêm estudar na Rússia, aprimoram sua técnica e se destacam no mercado, é claro que despertam em outros estudantes brasileiros o interesse em repetir essa experiência", diz Germano.

A opinião de Germano é compartilhada por outro pianista, Luiz Gustavo Carvalho, 31, que também foi discípulo de Virssaladze em Moscou, entre 2006 e 2009.

"Uma das primeiras alunas da Elisso, quando essa era assistente de Yakov Zak, foi a pianista brasileira Linda Bustani. Pablo Rossi, que também se formou com ela, é na minha opinião o pianista mais interessante entre os jovens artistas brasileiros", diz.

Luiz Gustavo Carvalho Foto: Press Photo

Natural de Belo Horizonte, Carvalho conheceu Elisso já na Europa, para onde partiu em 1997 para aprimorar os estudos musicais.

"A influência da personalidade de Elisso Virsaladze, durante o período que estudei com ela no Consevatório Tchaikovsky, ia muito além de questões de interpretação e técnica pianística. Ela é dona de uma cultura singular, além de ter convivido com artistas com Sviatoslav Richter", afirma o mineiro.

Bolsas e cultura efervescente

Para auxiliá-lo financeiramente, Rossi contou com o mecenato do empresário Roberto Baumgart, além de uma bolsa concedida pelo Estado de Santa Catarina, então governado por Luiz Henrique da Silveira - fundador da Escola do Balé Bolshoi em Joinville e um dos maiores elos culturais entre o sul do país e a Rússia.

Mas não foi o caso de Almeida, do Theatro Municipal. "Fui sem nenhuma bolsa. Encarei como se fosse uma especialização do meu trabalho. Como tirei uma licença remunerada por dois meses, foi como se o próprio teatro tivesse me dado uma bolsa", diz. 

Já o doutorando em regência Wendell Kettle, 39, tem uma bolsa da Capes para estudar no Conservatório Musical de São Petersburgo Rímski-Korssakov. Em 2010, quando foi foi escolhido no processo seletivo da agência de fomento à pesquisa, apenas três bolsas foram concedidas na área de música, incluindo a sua. 

Especializando-se na técnica de regência do russo Iliá Músin (1904-1999), Kettle chegou a ser aceito pela Royal Academy of Music, em Londres, mas acabou optando pela instituição petersburguense.

"Claro que eu já sabia da tradição muito forte da música erudita na Rússia e da escola operística, principalmente em São Petersburgo. Na Rússia a técnica se diferencia da alemã ou mesmo da francesa. Por exemplo, a atual chefe de regência da Royal Academy estudou aqui, com Iliá Músin. O professor principal de regência da Hanns Eisler, de Berlim, também estudou aqui", conta Kettle.

A vida cultural efervescente das principais cidades russas e sua longa tradição nesse tipo de música estão entre os principais atrativos de alunos internacionais.

"Para um jovem músico, é muito importante estar em uma cidade que recebe gigantes da música, orquestras sinfônicas. Acho que, em toda a história mundial, o músico não se formou sentado ao seu piano ou trancado em uma sala com seu violino. Isso é algo muito importante e que a escola russa valoriza: o preparo humanista do aluno, para conhecer literatura, artes em geral, frequentar concertos, balés... E Moscou vive arte!", diz Rossi.

O sistema educacional musical também impressiona os jovens brasileiros. Isso porque os russos devem optar pela carreira musical muito cedo, e aos seis anos de idade já ingressam em uma escola especial onde todas as matérias têm foco no tema da música. Como resultado, todos eles desenvolvem um ouvido absoluto relativo, ou seja, treinado, diz Rossi.

Apesar de também ter iniciado sua preparação cedo, o pianista ainda se surpreende com a precocidade da escolha russa.

"Hoje estava lendo uma entrevista com um músico russo prolífico e o jornalista perguntava a ele: 'Quer dizer que você começou tarde, aos oito anos?'", conta rindo.

 

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