A Primeira Guerra Mundial nas cartas dos combatentes russos

Quem estava debaixo do fogo, ficava com os nervos à flor da pele Foto: RIA Nóvosti

Quem estava debaixo do fogo, ficava com os nervos à flor da pele Foto: RIA Nóvosti

Quando a Rússia entrou na guerra, passou a vigorar o “Regulamento Provisório sobre a Censura Militar”, que permitia a leitura e o confisco de quaisquer cartas das frentes que contivessem informação secretas. Graças ao regulamento, muitas dessas cartas chegaram até nós, se encontrando hoje nos arquivos. O Arquivo Estatal da História Militar preserva vários volumes de cartas redigidas nos próprios locais de combate.

No início da guerra, os russos se alimentavam de ilusões. “É verdade que o inimigo é poderoso, mas não tanto que não o possamos vencer, todos nós estamos convictos de que a vitória final será nossa”, escrevia o coronel Samsonov a sua mulher. “Todo o povo entende a necessidade desta guerra, os soldados combatem com entusiasmo os alemães.” Em muitas das cartas, a confiança na vitória é repetida como um refrão.

Entretanto, em pouco tempo, os campos de batalha se cobriram de corpos dos tombados, e os familiares começaram a receber notificações de mortes. Foi então que as pessoas tomaram consciência da guerra como uma catástrofe pessoal, e a percepção da irreversibilidade dos acontecimentos, realmente terríveis, abalou as almas. Um oficial russo escreveu:

“Grandes batalhas se desenrolam dia após dia em todas as frentes. Muitos pereceram já nos campos de batalha, muitos vão tombar ainda. Voltará alguém inteiro? Todos os terrenos em que ocorreram combates estão cobertos de corpos, tanto de nossos guerreiros como de alemães, mortos por balas ou por ferimentos. Quantos morrerão ainda? A guerra (…) É uma calamidade! A morte e a destruição estão por todo o lado.”

As palavras de outro oficial russo soam já como um apelo antiguerra, como um chamamento desesperado: “Quem esteve na guerra, quem participou dela, percebe que é um mal enorme. As pessoas devem fazer tudo para lhe por fim.”

Exacerbação

Os combates se transformam numa carnificina. “Estamos defendendo uma ponte”,  relatou um soldado. “Ontem, os alemães procuraram passar para o nosso lado; deixamos que fossem até o meio da ponte, depois abrimos um fogo tão infernal que o inimigo teve de recuar em debandada. A ponte ficou coberta de cadáveres. Hoje, ou tentaram passar de novo, ou queriam recolher os mortos. Então, se esforçaram por atravessar o rio mais à direita. Se atiraram para a corrente, ficando com a água pelos queixos, mas os nossos apontadores de metralhadora e atiradores nem ao meio do rio os deixaram chegar. Terminado o combate, ouvi dizer que as águas ficaram cor de rosa. Não admira, pois houve pelo menos 5.000 ou 6.000 mortos, e todos ficaram no rio.”

Outro soldado descreveu, com grande ansiedade, confrontos semelhantes, de crueza assustadora. Eis um fragmento:

“Estávamos entrincheirados, rechaçando os ataques alemães; o inimigo se aproximava a uns 400 passos, depois voltava para trás, desaparecia. Quatro vezes se aproximaram tanto das nossas trincheiras que lhes vimos as caras, mas não aguentaram o nosso fogo e retrocederam. Eu e Sazonov, deitados na trincheira lado a lado, apontávamos aos oficiais deles, escolhendo também dos soldados os maiores de corpo. Matamos muitos daqueles malditos! Eles avançavam calados, sem disparar, em formação. Só quando estavam à distância de tiro certeiro, abríamos fogo cerrado. A primeira fila caía, como que ceifada, e os de trás davam uma volta e sumiam. Ficamos arrepiados, o cabelo em pé. Penso que, dessa vez, eu, Sazonov e o nosso sargento mandamos muitos inimigos para o outro mundo. A expressão que faziam quando se aproximavam! Estavam pálidos enquanto avançavam. Um horror! Deus me livre de passar por coisa igual outra vez!”

Varredura total

Talvez o mais temível de tudo fossem ataques da artilharia inimiga. Nada dependia dos que eram atacados; a estes restava ir para baixo da terra, esperando que o fogo acabasse. Mas o fogo parecia interminável. A intensidade era tanta que, como escreveu um oficial de artilharia, “o canhoneio soltava um uivo aterrador, o sol escureceu, a fumaça não deixava ver nada para lá dos cinco passos”.

Foto: ITAR-TASS

Quem estava debaixo do fogo, ficava com os nervos à flor da pele. “Apetecia chorar”, confessou um oficial. A partir de então, muitos não aguentavam o silvo dos projéteis e rompiam em pranto: “O imparável estrondo indizível dos canhões, as explosões das granadas, que não nos deixam recuperar, tudo isso dá cabo dos nervos para sempre. Jelenin, o nosso coronel, se pôs soluçando como uma criança, se foi abaixo dos nervos. Rossoliúk também berra como um touro.”

Mas mesmo no meio deste inferno, a maioria dos combatentes mantinha a lucidez e o autodomínio. Abandonava a trincheira e se lançava ao ataque, sob uma saraivada de balas. Um oficial russo descreve assim os últimos instantes antes de um ataque:

“Por fim, começaram passando a palavra ao longo da linha de defesa: ‘Preparar para o ataque!’ Foi como uma descarga elétrica para nós; uns deram um jeito no equipamento; outros se benzeram com fé, tirando os gorros. Todo mundo sentiu a aproximação do grande momento. Ao longo da fila perpassa nova ordem: ‘Avante!’ Depois de mais um sinal da cruz, saltam da trincheira, gritando: ‘Irmãos! Ao ataque, avançar!’ Como de um formigueiro, a onda humana escorreu das trincheiras, alinhando pela direita, avançou, baionetas em riste, enfrentando a morte.”

Privações, sangue, lama das trincheiras, morte de companheiros de armas. Foi a Primeira Guerra Mundial, de uma envergadura e número de vítimas que a humanidade da segunda década do século 20 nunca vira até então.

 

Publicado originalmente no site Expert.ru

 

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