O desbravador da cultura brasileira

Há dois anos e meio no comando da área cultural da Embaixada Brasileira em Moscou, Igor Germano tem a difícil missão de apresentar aos russos música, literatura, cinema, e outros ângulos do Brasil pouco conhecidos desse público.

Há dois anos e meio no comando da área cultural da Embaixada Brasileira em Moscou, o primeiro secretário Igor Germano, 40 anos, tem a difícil missão de apresentar aos russos música, literatura, cinema, culinária e outros ângulos do Brasil pouco conhecidos desse público.

A tarefa se mostra ainda mais difícil  levando-se em conta que o diplomata passou quatro anos, de 2008 a 2012, em missão em Londres. Sozinha, a capital britânica reúne cerca de 100 mil brasileiros - contra as estimativas oficiais de apenas 900 desses em toda a extensão de 17 milhões de km2 da Rússia.

Foto: Marina Darmaros

A estratégia montada por Germano, porém, parece estar funcionando. Na direção dos "Dias do Brasil na Rússia" - que na realidade se distribuíram por três meses, de maio a julho - o primeiro secretário já obteve algumas vitórias notáveis. Uma delas foi alcançar um impensável recorde de  60 percursionistas na bateria da maior escola de samba já reunida na capital russa, no Parque Górki, em maio passado.

Cantarolando Caymmi entre uma frase e outra, Germano recebeu a Gazeta Russa na Embaixada do Brasil em Moscou para falar sobre o ciclo de eventos:

GR: Sempre se falou de ano do Brasil na Rússia e vice-versa, mas isso ainda não aconteceu. Quais são as perspectivas de tal evento?

IG: Isso é uma coisa política. O passo inicial, geralmente, é fazer dias de um país no outro, depois um mês, e depois até um ano, como o que aconteceu entre o Brasil e a França. Agora, as conversas caminham para que isso aconteça com a Rússia. Nesta semana, o presidente Pútin está indo para o Brasil e aí serão discutidos alguns temas da área cultural também, como esse.

GR: E houve alguma contrapartida dos dias do Brasil na Rússia?

IG: Sim, com a visita da Dilma a Moscou em 2012, uma das decisões foi a de se fazer os dias do Brasil na Rússia e vice-versa. A Rússia fez um festival de cinema em novembro do ano passado em São Paulo, Rio e Brasília.

GR: Qual a impressão geral dos eventos na Rússia?

IG: Os eventos começaram em 13 de maio, e para marcar o centenário do Dorival Caymmi, eu fiz alguns seminários sobre ele. Foi excelente! Ali a gente descobriu que, apesar de a maioria dos russos não conhecer o Dorival Caymmi, na verdade eles o conhecem, principalmente por meio de novelas e filmes.

Foto: divulgação

Por exemplo, a novela Escrava Isaura, que fez muito sucesso na União Soviética e em outros países, tinha o tema de abertura do Dorival Caymmi. "Vida de negro é difícil, é difícil..." [ele cantarola]. Eu tocava no violão e o pessoal já reconhecia.

E também tem o Jorge Amado, que é bastante conhecido aqui porque tinha contato com o Partido Comunista e era interessante, diferente, aquela coisa bem brasileira. Na década de 1970, fizeram nos Estados Unidos uma adaptação do romance "Capitães de Areia", e na maioria das adaptações dele se usavam músicas do Dorival Caymmi. Aí pegaram aquela "Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar..." [cantarola novamente].

Esse filme não fez sucesso no Brasil porque era época da ditadura militar e proibiram, era "coisa de comunista".  Nos Estados Unidos também não fez muito sucesso. Só que aqui, na Rússia, dizem que todo mundo conhece, principalmente uma geração um pouco mais velha. Existe até uma versão em russo, e eles todos sabem cantar a música. No seminário o pessoal todo cantou junto.

Aí, quando chegou a Márcia Castro - que foi a primeira brasileira a cantar no palco principal do festival Usadba Jazz, aqui em Moscou, como parte dos "Dias..." - eu contei isso e ela cantou a música no show, e as pessoas cantaram junto. Essas coisas são legais, você vai descobrindo que existem umas ligações de que não suspeitava. Mas, com certeza, as novelas são uma das maiores referências culturais do Brasil para a Rússia.

GR: Quer dizer que a embaixada brasileira em Moscou pode agradecer à TV Globo?

E também ao Jorge Amado, que são as referências. Por meio disso chega muito da música etc. Essa versão do "Capitães de Areia", por exemplo, dizem que foi vista por 43 milhões de pessoas na União Soviética, ficava reprisando direto. Sobre a novela Escrava Isaura, diz-se que paravam as reuniões do Partido para ver...

GR: Há uns dois anos, em uma mesa redonda sobre Brasil no Carnegie Center de Moscou, um brasilianista russo disse que não existe nenhum escritor brasileiro que valha a pena, exceto talvez por Jorge Amado. O que a embaixada faz para contornar essa falta de informação do público russo - até o especializado - quanto à cultura brasileira?

Isso acontece porque a União Soviética era muito fechada, e só Jorge Amado, praticamente, entrava. A gente tem alguns projetos para tentar divulgar a literatura clássica do Brasil. Já editamos alguns livros do Machado, uma coletânea de contos, e nossa embaixada em Minsk [na Bielorrússia] publicou também o "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em uma edição bem bonita. Agora estamos com recursos para selecionar uma nova obra, que talvez seja de Lima Barreto. E estamos com projetos para editar outros clássicos. Também buscamos aumentar a tradução de autores contemporâneos e até de literatura infantil.

GR: Quais as novidades com os contemporâneos?

Temos algumas coisas independentes. Por exemplo, foi lançada uma edição russa daquele livro de história do Boris Fausto, o "História Concisa do Brasil". Jorge Amado tem em todo o canto.

GR: A impressão que dá, trabalhando para a Gazeta Russa é que aumentou demais o interesse dos brasileiros pela cultura russa: literatura clássica e contemporânea, cinema, artes...

IG: Eu também sou suspeito, porque trabalho na outra ponta. Estou aqui há dois anos e meio, e tem crescido muito o interesse dos russo pela cultura brasileira. Um dos fatores é que, desde 2010, caiu o regime de vistos para turismo. Só isso já aumentou muito as relações interpessoais e culturais: são músicos vêm para cá, artistas que vão para lá e para cá...

Hoje, há poucos brasileiros na Rússia, cerca de 900, em uma estimativa geral, entre estudantes, empresários e alguns jogadores de futebol. Mas esse número está aumentando, e o interesse também. O que os dois países podem fazer para aumentar isso é criar um centro cultural russo no Brasil e um centro cultural brasileiro na Rússia. Neste sentido, há um acordo sendo discutido que poderá ser assinado em breve.

Foto: divulgação

Outro acordo que poderá sair em breve e ajudará muito é o de coprodução audiovisual - que já está sendo discutido há alguns anos. Na prática, as produções russo-brasileiras, além de proporcionar a possibilidade de encontro de profissionais dos dois países, também ajudam a abrir o mercado, que é dominado por Hollywood - o que não é necessariamente ruim, mas a filmografia de outros países fica muito limitada. Se sobram 20% das cotas de tela para produção nacional e de outros países, não tenho dúvidas de que muitos filmes argentinos bons não são exibidos no Brasil, e olhe que somos vizinhos. Então, o que dizer dos russos? A ideia é que, com coproduções, esses filmes consigam chegar aos países e também à televisão: aí já estamos falando não de 300 pessoas por sala, mas de milhares. Esse acordo vai eliminar burocracias, facilitar a associação de produtores dos dois países, estabelecer porcentagens e ajudar na distribuição.

Além disso, os presidentes agora também devem assinar um memorando executivo com essa parte cultural, ou seja, institucionalizar essas ideias.  Juntando isso tudo, vemos que estamos em um momento especial das relações culturais bilaterais.

GR: Houve percalços na organização dos dias?

IG: Tínhamos programado uma exposição de artistas brasileiros, mas as obras ficaram presas no aeroporto por algum erro do despachante. Mas junto com eles estava marcada também a apresentação de uma banda de rua chamada Grupo Ôncalo, formada por garotos da rede pública de São Paulo, e foi bem interessante. Eles fizeram um repertório com Tim Maia, foi bem legal. Eles se apresentaram na Biblioteca Infantil e no Parque Górki também.

GR: Como foi a frequência dos eventos?

IG: No show do Yamandu [Costa], por exemplo, a casa encheu. Junto com ele veio também um pessoal de uma produtora brasileira que está gravando um documentário sobre o violão de sete cordas, que na Rússia é conhecido como "violão russo". Ele teria sido inventado aqui, só que hoje em dia não é tão popular assim. O Yamandu foi com a equipe, visitou o Luthier que faz esses violões e no fim convidou dois violonistas russos para tocar no show... Em cada área você vai descobrindo novas ligações: diz a lenda que o violão de sete cordas chegou no Brasil por meio de um marinheiro russo e aí foi introduzido no choro. E hoje o Brasil é um país que tem tradição nisso.

Foto: divulgação

Quem veio também foi o João Donato, que está completando 80 anos neste ano, e fez shows na Casa da Música, em Moscou, e na Filarmônica, em São Petersburgo. Lá, principalmente, foi bonito de ver: ficou lotada a sala, colocaram cadeiras extras, o pessoal levantou e dançou... Vários russos disseram que era a primeira vez que viam isso acontecer ali.

GR: Antes de Moscou, você esteve em missão diplomática em Londres, onde há muitos brasileiros. Aqui, você se sente desbravando o desconhecido?

Exatamente, é esse o ponto! Ali na Europa Ocidental e na América do Sul há muitos brasileiros. Em Londres, onde eu estive desde 2008, há uma estimativa de 100 mil brasileiros, fora turistas. Então aqui é muito interessante essa experiência de divulgação cultural, porque para muitas pessoas é a primeira vez mesmo que elas entram em contato com isso e, às vezes, elas ainda misturam muito Brasil com México, com Cuba, confundem a língua... Eles conhecem música brasileira, mas não identificam exatamente como tal. E conhecem Jorge Amado ou Dorival Caymmi pelas novelas.

Foto: divulgação

Como tem pouco brasileiro aqui, o que mais nos impressiona é ver as iniciativas dos russos para divulgar a cultura brasileira. E eu percebi que uma das estratégias era chamar esses russos para os eventos. Por exemplo, no festival de samba no Parque Górki, o primeiro festival de samba de Moscou, a gente conseguiu reunir a maior escola de samba já vista aqui, com 60 pessoas - a maioria russos. Já existem alguns grupos de percussão pequenos, de cerca de 15 russos, que reunimos a alguns convidados de fora: um mestre de bateria que mora em Berlim, que veio fazer um workshop, além de uns três da Sérvia... No final reuniram-se 60 pessoas que fizeram a maior batucada.

GR: Quais outros movimentos culturais brasileiros têm despontado no país?

De quatro anos para cá, começando em São Petersburgo, tem também o movimento do forró. É uma coisa um meio inusitada para um brasileiro: forró na Rússia. Lá tem umas quatro escolas de forró e grupos formados só por russos que tocam forró. Aqui em Moscou tem de duas a três escolas e um grupo chamado "Forrosteiros", que só toca músicas do Luiz Gonzaga etc.

Foto: arquivo pessoal

Também tem crescido muito a busca por cursos de língua portuguesa na vertente brasileira, já que normalmente aqui é ensinado o português de Portugal, até pela distância menor entre os países. Então estamos tentando fazer, junto aos professores da MGU, uma gramática mais para as especificidades do português falado no Brasil. A Embaixada também lançou um guia de conversação de português que é o na vertente brasileira. Além disso, temos um "leitor" brasileiro na Universidade Estatal de Moscou, que dá aulas de língua portuguesa e cultura brasileira. Outras universidades também já demonstraram interesse em ter esses leitores.

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