Tradução que atravessa culturas

Realidade soviética é uma das mais difíceis de traduzir, apontam os especialistas Foto: Flickr.com / nwhite1

Realidade soviética é uma das mais difíceis de traduzir, apontam os especialistas Foto: Flickr.com / nwhite1

Todos os anos as prateleiras das livrarias são invadidas por novos livros traduzidos do russo. Em 2013, foram publicados desde os diários de Mikhail Bulgakov à poesia surreal de Aleksandr Vvedenski e os tratados filosóficos de Lev Tolstói. Mas o processo de tradução é mais complexo do que a compreensão da língua. Tradutores de Tolstói e Pelevin falam sobre mal-entendidos, diferenças culturais e dicas na hora de traduzir do russo.

Trabalhando há anos como tradutor do russo para o inglês, Robert Chandler já assinou a tradução de obras clássicas de Andrei Platonov e Vassili Grossman. “Para palavras russas longas e aparentemente difíceis, o dicionário é, de modo geral, adequado. Mas quanto menor a palavra, mais significados tende a ter e maior a possibilidade de entender errado”, disse Chandler à Gazeta Russa.

As diferenças culturais entre a Rússia e o Ocidente também complicam o uso da linguagem. O tradutor Arca Tait ressalta que não se pode presumir a familiaridade do leitor com a cultura russa. “Será que todo mundo sabe mesmo o que é uma datcha, matriochka ou babuchka?”, questiona.

“Muitos leitores estão até familiarizados com os detalhes da vida na Rússia do século 19, o que ajuda, mas a ‘experiência soviética’ era tão diferente, até certo ponto intraduzível”, Tait. “É difícil saber até como se referir ao lugar: não era uma nação, não era um país – era uma espécie de reivindicação ideológica.”

Tait trabalhou na tradução de 25 títulos do russo e venceu um prêmio, em 2010, por sua versão de “A Rússia de Pútin”, de Anna Politkovskaia. Atualmente trabalha com autores bem conhecidos da nova leva, incluindo Ludmila Ulitskaia e Victor Pelevin. Tait descreve a gramática russa como um “paraíso dos nerds" e diz ter acompanhado “as conversas mais obscuras no Exército russo para absorver gírias obscenas e desonrosas”, na tentativa de se manter atualizado com o russo contemporâneo.

Toque pessoal

A poetisa e tradutora Katherine E. Young se diz desconfortável com a abordagem depreciativa de alguns críticos de tradução. “A maioria dos tradutores que eu conheço no EUA começaram como estudantes de língua”, disse à Gazeta Russa. “Temos que esquecer a ideia de que um bom trabalho de tradução envolve achar palavras equivalentes para todos os termos do original.”

Young insiste no conceito de tradução como uma apresentação musical. “Há um certo padrão a ser seguido, mas a música deve ser interpretada”, explicou.

Martin Dewhirst, tradutor russo com mais de meio século de experiência com trabalho de tradução diz que “via de regra, a tradução literal de uma obra tira todo o todo seu brilho, por isso que os tradutores devem acrescentar um tom próprio ao texto”. 

Ainda assim, precisão é fundamental. Anna Gunin, que traduz obras sobretudo do alemão, alerta contra os inúmeros casos de falsos cognatos entre o russo e outras línguas, isto é, palavras que se parecem ortograficamente, mas possuem sentidos totalmente diferentes.

Experiências diversas

Os romances extraordinários de Mikhail Chichkin foram traduzidos para 25 idiomas. A editora britânica teve que enviar ao autor três amostras de tradução de um mesmo trecho com nenhuma das frases traduzidas da mesma forma. “Isso não aconteceu porque um tradutor era melhor que o outro”, explica Chichkin, mas “apenas porque três pessoas diferentes traduziram o texto a partir de três experiências de vida, gostos e visões de mundo diferentes”.

Os textos pós-modernos de Chichkin são particularmente difíceis de converter para outra língua. Marian Schwartz, que traduziu algumas de suas obras, alega que “a diversidade de vozes é estonteante”, assim como a dificuldade de ditados e neologismos.

Schwartz diz que seu maior desafio é, contudo, encontrar os livros certos para traduzir e gostaria de ver “obras que atingissem um público mais heterogêneo”.

Muitos tradutores se esforçam para interessar o público geral pela leitura de literatura russa contemporânea. “Mas a maioria dos textos russos demoram muito para chegar ao ponto central, e levam muito tempo no processo de tradução”, diz Tait, referindo-se sobretudo a poesias. “O esforço necessário para fazer com que o texto flua é geralmente desproporcional ao impacto que costuma produzir.”

Rascunho à mão

Os tradutores geralmente desenvolvem hábitos individuais ou peculiaridades. Schwartz usa Wordfast, um software de memória de tradução, para manter a consistência do vocabulário e frases. Já Lisa Hayden, autora do blog “Estante de Lizok”, usa diferentes cores dependendo do projeto em que estiver trabalhando. “Sim, eu ainda trabalho muito com papel, principalmente no caso de textos curtos”, conta.

“Não dá para fazer tudo na tela”, explica Tait, “em algum momento, o texto precisa ser impresso”. Segundo ele, até “o Google Translate, às vezes, pode ter ideias melhores” e prefere “não saber como a história termina antes de finalizar o primeiro rascunho”.

Como outros tradutores, o amor de Tait pela literatura russa beira à obsessão. “Quando começo alguma tradução, acabo ignorando todas as outras coisa até terminar o trabalho”, conta.

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