Obra escrita por Joseph Goebbels é lançada na Rússia

A figura de Goebbels por si só não é um tema proibido no mundo livre. Seus diários dos anos 1930 e 1940 foram publicados há tempos nos EUA, na Inglaterra, na Itália e até na França Foto: wikipedia.org

A figura de Goebbels por si só não é um tema proibido no mundo livre. Seus diários dos anos 1930 e 1940 foram publicados há tempos nos EUA, na Inglaterra, na Itália e até na França Foto: wikipedia.org

Edição de romance escrito pelo mais próximo aliado de Hitler e principal propagandista do Terceiro Reich causou espanto na Rússia.

A editora russa Algoritmo acaba de lançar no país o romance “Michael”, do mais próximo aliado de Hitler e ministro da propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels. O livro, escrito por Goebbels em 1923, foi publicado na série "A Grande Prosa".

No prefácio da edição, lê-se: "Esse romance representa uma visão juvenil, ingênua em muitos aspectos, mas ao mesmo tempo atrevida das gerações anteriores de escritores: românticos, realistas, simbolistas, expressionistas. A imaturidade juvenil condiciona o arrebatamento, a sinceridade, a espontaneidade dos pensamentos e dos sentimentos do autor e a presença de aforismos cada vez mais aguçados. O romance está imbuído da influência tangível de Goethe, Nietzsche, Dostoiévski e do Evangelho. Alguns pontos controversos da novela apresentam-se hoje como um inegável anacronismo, mas devemos lembrar que na época em que o romance foi criado, eles não estavam à margem e sim eram amplamente aceitos em todos os estratos da sociedade. Por isso, não temos o direito de censurar o autor por esse ou aquele ponto de vista que nem mesmo poderia ser pessoalmente dele".

A primeira reação é de choque, assombro e indignação. Como? Aqui? No país que ajudou a vencer o nazismo? No país onde estão vivos os veteranos da Guerra Patriótica de 1941 a 1945 [como os russos chamam a Segunda Guerra], onde vivem os filhos, netos e bisnetos daqueles que não retornaram dessa guerra, onde, ainda hoje, equipes de buscas encontram ossos de "soldados desconhecidos" e os enterram em valas comuns?

Antecipando a reação ao livro, a editora Algoritmo recorreu a uma espécie de justificativa, incluindo as seguintes palavras no prefácio: "Em 1987, o romance ‘Michael’, traduzido para o inglês, foi publicado pela editora Amok Press, em Nova York”.

Não foi das melhores. Seja lá qual for a posição assumida em relação à Algoritmo –que já suscitou um grande número de reclamações, algumas vezes não obtendo permissão para participar da Feira Internacional do Livro Não/Ficção por causa da propaganda nacionalista–, a editora de maneira alguma pode ser considerada insignificante ou “à margem” na indústria. Pelo contrário. A casa editorial é bastante agressiva sob o ponto de vista comercial, contando com livros de conteúdos bastante variados: de filosofia religiosa russa, escritos do filólogo e historiador Vadim Kojinov, além de obras de Igor Chafarevitch, panegíricos em louvor a Joseph Stálin, memórias de Valeria Zolotukhina, entre outros.

Seus livros estão dispostos nas principais livrarias, nas pequenas lojas, em supermercados e até mesmo em bancas de jornais. Isso é compreensível: o interesse em relação aos temas citados acima sempre foi e continuará sendo grande no nosso país.

Já a editora da Amok Press está exatamente à margem. Seu co-fundador é o publicista americano Adam Parfrey, compilador de um livro cult nos círculos artísticos radicais denominado “Cultura do Apocalipse”, que foi proibido em vários países, incluindo a Rússia.

Capa do livro "Michael"

O livro é uma coletânea de artigos e entrevistas sobre ocultismo, satanismo, sadomasoquismo, entre outros temas. A palavra Amok (vem do malaio meng-âmok, ficar furioso, matar) significa um estado mental caracterizado por uma excitação motora e ações agressivas, um ataque gratuito às pessoas.

A figura de Goebbels por si só não é um tema proibido no mundo livre. Seus diários dos anos 1930 e 1940 foram publicados há tempos nos EUA, na Inglaterra, na Itália e até na França. O que é compreensível, pois a memória histórica não consiste apenas nas recordações das gloriosas vitórias, mas também na amargura da derrota e na tentativa de entender as pessoas que criaram a história sangrenta do século 20. Pelo menos para avaliar tais figuras na fase inicial de sua formação.

Para um filólogo e um historiador sérios, o fato de que Goebbels, em sua juventude, gostar de simbolismo alemão e neorromantismo diz muito. Na mesma época, o grande escritor alemão Thomas Mann estava empolgado com as mesmas coisas. Aparentemente, o pano de fundo cultural era o mesmo para os dois –Nietzsche, Dostoiévski, o Evangelho interpretado de forma peculiar. Mas que resultados diferentes. Nem mesmo em um pesadelo você poderia imaginar que Thomas Mann justificasse, através da ideologia, a destruição de milhões de pessoas e o fim de sua jornada com o assassinato dos próprios filhos.

E isso, quer gostemos ou não, teremos que esclarecer. É difícil prever que onda virá do passado e quando ela irá nos alcançar. Viver de olhos bem fechados talvez seja confortável, mas não é seguro. Assim como misturar fontes históricas com a prosa atual, muito menos com a “grande prosa”.

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