Como vivem os russos desde o início da época pós-soviética

Ilustração: Aleksêi Iórch

Ilustração: Aleksêi Iórch

A própria possibilidade de debater abertamente sobre o nosso passado comum já é uma conquista.

Meus amigos atraíram a minha atenção para o debate, na China, sobre as consequências da desagregação da União Soviética. Na verdade, na Rússia, o tema também é discutido o tempo todo: seja pelos políticos na TV, pelos intelectuais nos jornais, entre companheiros de viagem nos trens, pelas famílias na cozinha ou durante o chá da tarde.

Devo dizer que a própria possibilidade de debater abertamente sobre o nosso passado comum já é uma conquista da época pós-soviética, que surgiu pela primeira vez na história da Rússia. Abaixo, citarei alguns fatos da vida das pessoas comuns na Rússia em cada uma das três seguintes épocas: os anos 1980, os 1990 e os 2000.

A URSS dos anos 80

Meu passaporte, até hoje, indica que nasci na URSS. Peguei a pontinha da era Brejnev, ou seja, o governo do líder que, de acordo com as pesquisas de opinião, goza da maior popularidade entre os russos no momento atual. Como vivíamos naquela época?

No início dos anos 1980, o déficit de mercadorias retornava à URSS. Comprar produtos e artigos de qualidade era possível nas capitais, no Extremo Norte, bem como nas capitais das repúblicas nacionais. Na parte central da Rússia, longe das capitais, era difícil comprar até mesmo batatas. As bananas eram consideradas uma iguaria, e as roupas vendidas nas lojas eram tão fora de moda que as mulheres ingressavam, em massa, em cursos de corte e costura e tricô, para que pudessem se vestir um pouco mais de acordo com a moda.

Por outro lado, assim como agora, já usufruíamos das maiores realizações da URSS,  educação e  cuidados com a saúde gratuitos e disponíveis a todos. Na Constituição de 1977 foi consagrado o direito dos cidadãos da URSS à educação em todos os níveis, desde o primário até o ensino superior. Na prática, ainda no início dos anos 1930, 98% de todas as meninas e meninos das cidades e aldeias já estavam estudando em escolas primárias gratuitas; no início dos anos 1960, as crianças de qualquer lugar do país recebiam uma educação mínima de oito anos.

O atendimento à saúde era gratuito desde 1917; na realidade, o acesso aos serviços de saúde foi se expandindo de maneira gradual. Inicialmente nas cidades, em seguida, nas aldeias.  Nos anos 1980, ele já estava disponível em todo o território nacional.

Em terceiro lugar, a União Soviética manteve nos anos 1980 um rigoroso sistema de registro e autorização de residência, cujas tristes consequências colhemos até agora, na forma da divisão dos cidadãos em duas castas: os residentes metropolitanos e os residentes provinciais. Até mesmo os graduados pelas principais instituições de ensino superior de Moscou e São Petersburgo eram impelidos a deixar as capitais ao término de seus estudos. A principal maneira de conseguir permanecer definitivamente nas capitais eram os casamentos com possuidores da autorização de residência permanente na capital

A Rússia nos 1990


Víktor Tsoi Foto: Serguêi Borissov

O ídolo da juventude dessa década era o cantor Víktor Tsoi, que expressava nitidamente o estado de espírito da época: "Mudanças! Estamos esperando por mudanças!". Os anos 1990 realmente se tornaram a era das mudanças. Para muitos foi a época da realização do sonho, para muitos outros, a das esperanças traídas.

O início da década foi marcado pela redistribuição das propriedades do Estado Soviético entre proprietários privados. Como resultado, por um lado, surgiram os milionários e oligarcas; por outro, em consequência da inflação, dezenas de milhões de russos perderam todas as suas economias em questão de alguns meses, em 1992.

Guardando ressentimentos, com razão, em relação aos resultados das privatizações e à desvalorização dos depósitos, muitas vezes nos esquecemos do fato de que uma moradia foi dada à maioria. No início da década, mais de 70% das famílias soviéticas viviam nas cidades, a maioria em apartamentos disponibilizados em função do lugar de trabalho. As famílias não tinham, formalmente, direitos privados de propriedade sobre esses imóveis. Em 1992, foi-lhes concedido o direito de tomar posse deles por tempo indeterminado, praticamente sem qualquer custo (esse direito é preservado até hoje e cerca de 80% dos moradores dos apartamentos já usufruíram dele).

A Rússia no século 21

Se os anos 1990 representam a época da revolução, o início do novo século se tornou o tempo da estabilização pós-revolucionária. As principais conquistas das reformas da década de noventa não foram revistas –o mais correto seria dizer que elas tiveram o seu desenvolvimento lógico.

Ao chegar ao poder em 2000, Vladímir Pútin definiu como prioridade a instauração do Estado de Direito. Até então, a ideia dos cidadãos da Rússia sobre o conceito era bastante vaga. Durante a época de Gorbachev, a ênfase era dada à transparência; na época de Iéltsin, à democratização e aos direitos eleitorais.

Como resultado da reforma judicial, em 2010, os Tribunais do Júri passaram a funcionar em toda a Rússia. De acordo com a Suprema Corte da Federação da Rússia, em 2005, eles examinavam cerca de 20% de todos os casos criminais. As empresas russas visivelmente passaram a buscar com maior frequência a assistência da lei na solução de litígios. De um modo geral, a consciência jurídica da população melhorou significativamente e, em todas as esferas, os russos começaram a invocar a lei com frequência cada vez maior.

Além disso, os rendimentos e, consequentemente, a qualidade de vida dos russos cresceram rapidamente ao longo da década, superando o nível da URSS. Em 2012, o Banco Mundial, pela primeira vez na história, incluiu a Rússia entre os países de renda elevada. Em 2012, o PIB per capita nos valores correntes totalizou US$ 14.037, mais de quatro vezes acima do nível de 1989.

Hoje, o salário médio no país é de cerca de 30 mil rublos (cerca de US$ 900). Em Moscou, onde um russo proveniente de qualquer lugar do país pode trabalhar, o salário médio supera esse valor em mais de uma vez e meia. Em 2012, era de 48 mil rublos por mês (US$ 1.460).

As garantias do governo da gratuidade de saúde e educação seguem preservadas.

Enfim, ao final da primeira década dos anos 2000, a situação demográfica na Rússia finalmente melhorou, refletindo o aumento da confiança no futuro da população. A política para estimular as taxas de natalidade lançada em 2004 também desempenhou um papel determinante. Em 2009, a tendência de decréscimo da população foi substituída por um crescimento lento. Desde então, a população tem crescido, anualmente, em cerca de 200 mil pessoas.

De acordo com estimativas dos especialistas, o número de filhos para cada mulher na Rússia é de 1,6 a 1,7. Segundo esse indicador, a Rússia já atingiu o nível mais alto da Europa Oriental e superou os indicadores médios da União Europeia.

Para comparação: em último lugar no mundo em nível de fertilidade está Cingapura, onde o indicador é de 0,79; no Japão, ele é de 1,39; na Alemanha, de 1,42; na China, de 1,55; na União Europeia, em média, de 1,58.

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