“Ocorre uma crise das organizações hierárquicas e centralizadas”

Lúcia Murat acompanhou exibição do filme no Festival Internacional de Cinema de Moscou Foto: moscowfilmfestival.ru

Lúcia Murat acompanhou exibição do filme no Festival Internacional de Cinema de Moscou Foto: moscowfilmfestival.ru

Na semana passada, a diretora de “A memória que me contam”, Lúcia Murat, e um dos personagens centrais da trama, Patrick Sampaio, apresentaram o filme no Festival Internacional de Cinema de Moscou. Em entrevista à Gazeta Russa, os dois falaram sobre a situação política atual no Brasil e como ela une a geração de 1960 com os jovens de hoje.

Gazeta Russa: “A memória que me contam” é um filme destinado mais para os jovens ou para os adultos?

Lúcia Murat: Acho que todo filme tem várias camadas de compreensão, e esse não é uma exceção. É certo que os adultos têm uma compreensão do filme e os jovens têm outra. Mas o filme foi escrito por duas pessoas de gerações diferentes – por mim e pela Tatiana [Tatiana Salem Levy], que tem 33 anos. E enquanto escrevíamos eu representava a minha geração, ela representava a dela. Então, eu acho que obviamente são relações diferentes. A minha geração se emociona mais em certos aspectos, a geração mais jovem, em outros.

"A memória que me contam"

Com a iminente morte da ex-guerrilheira e ícone do movimento de esquerda Ana, um grupo de amigos que resistiu à ditadura militar no Brasil se vê reunido na sala de espera de um hospital.

Patrick Sampaio: Concordo. Nas discussões que foram geradas em torno do filme, percebi que minha geração ficou tocada com a percepção de um grupo de pessoas que acredita ou acreditou muito em um objetivo comum. Essa força é sintetizada na figura da [ex-militante de esquerda] Vera Sílvia Magalhães e que, por isso, chega a se transformar num filme que a homenageia. Outra questão à qual minha geração se mostrou sensível, positivamente, é a homossexualidade sendo tratada de forma tão delicada e sem os clichês aos quais costumam estar associados. As personagens não são caricatas. Das gerações mais velhas, ouvi sobre as múltiplas perspectivas que o filme abre em torno da luta desses personagens durante a ditadura, mas também ao longo de todos esses anos. Essa autocrítica suscita discussões. Foi um acerto o roteiro ser escrito por duas pessoas de gerações diferentes.

GR: E hoje no Brasil existe algo, como uma ideia ou um símbolo, que une as duas gerações?

LM:  É o que está acontecendo no Brasil agora. São manifestações de rua basicamente organizadas pelos jovens. Foi uma coisa súbita e muita gente se surpreendeu.  Os próprios jovens não esperavam, ninguém esperava essa explosão com a força que veio. As questões voltaram a ser discutidas, e isso é muito bom. Todo mundo começa a comparar o que aconteceu nos anos 60 com o que está acontecendo hoje. A discussão voltou, mas ao mesmo tempo a realidade é muito diferente. Na minha época tínhamos uma ditadura no país e combatíamos essa ditadura. Hoje vivemos sob um regime democrático e os jovens não querem derrubar um regime legalmente constituído.  Querem mudar a situação do país, onde o próprio governo estava muito acomodado. Eles querem melhores condições de vida nas cidades, melhor transporte, melhor saúde, melhor educação. Mas a paixão daquela época está presente hoje. Então eu acho  que nesse sentido existe uma unidade entre essas duas gerações no momento.

GR: O cinema contribui para mudar a situação do país para melhor? Você enxerga essa relação em “A memória que me contam”?

LM: Acho que o filme tem as duas posições. O filme tenta refletir as diversas contradições existentes. Por isso tal reflexão é muito importante. Nas personagens dos jovens masculinos prepondera a questão artística. Mas a personagem feminina, a Cloé, questiona o tempo todo tanto os mais velhos como os mais jovens. E termina o filme dizendo: “Nós estamos aqui, nós persistimos”. Foi quase uma previsão do que iria acontecer com as manifestações dos jovens hoje. Na grande revolução da minha adolescência tínhamos uma fantasia da sociedade ideal. Acho que hoje os jovens tem uma visão menos autoritária. A questão artística no filme existe também nos mais velhos, pois a personagem cineasta faz uma homenagem ao cinema, como forma de superar a dor. Existe, assim, um filme dentro do filme. A arte, claro,  representa também a possibilidade de mudar.  São momentos diferentes, relações diferentes, mas tudo é transformação.

PS: Penso que não tem um caminho único. Eu sinto que talvez ambos os lados se contaminam um pelo outro. Se entendermos que as manifestações, estariam mais próximas da institucionalidade, acho que elas tem a ganhar se forem mais invadidas pela arte e pela criatividade. Isso pode obrigar a institucionalidade a se estruturar de uma maneira mais móvel, e esse é o desafio. O que está acontecendo é uma crise das organizações hierárquicas, verticais e centralizadas como um todo. As novas lutas têm trabalhado no sentido da descentralização e da mobilidade. Os poderes centralizados estão em crise no mundo inteiro, em todos os sentidos e todas as camadas. E do outro lado, do lado da arte, eu acho que também existe um desafio de torná-la mais presente no cotidiano, mais consistente na sua relação com as cidades. Em todo o caso, se precisarmos definir uma única coisa que seja mais eficiente, é continuarmos nos perguntando – sem deixar de agir.

GR: Para a protagonista Ana, parece que os amigos e o namorado dela são mais importantes que a luta. É issomesmo?

LM: Acho que a amizade é uma questão fundamental para ela. Ela lutou muito para manter essa amizade e conseguiu, não é? Aquelas pessoas que se reúnem em torno dela tem posições diferentes em relação ao passado e ao presente. E mesmo assim estão ali juntas. A Ana é fundamentalmente uma pessoa que representa a utopia, uma utopia muito bonita, mas também traz a  incapacidade de enfrentar as limitações da vida. Ela é incapaz também de, em suas palavras, “se reintegrar”  a uma sociedade onde existe corrupção,  jogo de poder etc.

PS: A Ana busca descobrir quem ela se tornou afinal, e se a ideia de integração ou reintegração deveria ser realmente um objetivo. Será que é algo a se desejar, é algo bom? Será que isso vale continuar ali, viva? Acontece nela uma retrospectiva sobre o tudo que atesta que a luta valeu. Ter aberto mão de constituir uma família própria de ter um filho realmente dela, por exemplo, em nome da luta e da militância política, valeu a pena? Ao mesmo tempo, acredito que sim, ela encontra sinais que a permitem afirmar que valeu a pena. 

GR: Qual é, na opinião de vocês, o ponto central da trama? 

LM: É um filme sobre amizade. 

PS: Concordo, sobre amizade. E também sobre olhar para agora sem esquecer de olhar para trás.

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