“Só alguém muito doente e solitário para fazer isso”

Depois de passar pela quarta cirurgia em Moscou, Fílin (na foto) falou à Gazeta Russa sobre o ataque sofrido no palco do Bolshoi. Foto: RIA Nóvosti

Depois de passar pela quarta cirurgia em Moscou, Fílin (na foto) falou à Gazeta Russa sobre o ataque sofrido no palco do Bolshoi. Foto: RIA Nóvosti

No último dia 17, um homem mascarado jogou ácido sulfúrico no rosto do diretor artístico do teatro Bolshoi, Serguêi Fílin. Depois de passar duas semanas internado em Moscou, ele deixou o hospital nesta segunda-feira (4) para receber cuidados especiais na Alemanha. Depois de passar pela quarta cirurgia em Moscou, Fílin conversou com a correspondente da Gazeta Russa sobre o ataque sofrido.

Gazeta Russa: O ataque chocou o mundo inteiro pela forma como ocorreu. Você está preocupado com sua aparência? 

Serguêi Fílin: Como homem, posso dizer que a minha aparência não me incomoda: a beleza não está no rosto. Eu vou ser o mesmo Serguêi Fílin que costumava amar, ser um bom amigo e falar a verdade. Espero que aqueles que me conhecem não virem as costas para mim quando se derem conta de que agora estou um pouco careca e cego. Também prometo que todos os nossos balés novos serão encenados. Talvez não consiga vê-los tão bem, mas vou poder ouvi-los.

GR: Seus amigos o descrevem como um lutador destemido e dizem que continua trabalhar mesmo no hospital. Como você mantém essa animação?

SF: Às vezes coloco a mão no meu peito e me pergunto: “É difícil, Serguêi?” Sim, é. “Dói, Serguêi?” Sim, dói. “Você vai superar esse problema?” É claro que eu vou. Esse é apenas mais um desafio testando a minha força. Mas eu me recrimino por ser ter sido muito descuidado com a minha própria segurança desde dezembro passado, quando comecei a sentir algumas situações negativas e hostilidade ao meu redor.

GR: O diretor geral do Bolshoi, Anatóli Iksanov, disse em uma entrevista à revista “Newsweek” que, nos últimos dois anos, surgiu um grupo de pessoas interessadas em criar uma guerra no teatro. Quem são essas pessoas? Você suspeita de alguém?

SF: Desde o segundo dia que entrei no Bolshoi como diretor de balé, em 2011, senti que algo estranho estava acontecendo dentro do teatro e em torno dele; todos os tipos de intrigas, vazamento de materiais comprometedores em meios de comunicação e na internet, como se alguém nos mais altos escalões da administração do Bolshoi estivesse tentando nos atingir e destruir. Estou convencido de que não há duas ou três pessoas, mas um grupo grande envolvido nesse movimento.

GR: Hackers invadiram seu e-mail pessoal no ano passado e publicaram e-mails nos quais você critica algumas declarações feitas por um de seus principais dançarinos, Nikolai Tsiskaridze. Você suspeita que ele tenha encomendado o ataque contra você?

S.F: Vamos descobrir a verdade muito em breve. Infelizmente, eu não investiguei antes. Mas sempre percebi que deveria trabalhar em duas frentes, demonstrando resultados perfeitos de balé e, ao mesmo tempo, não permitindo que me chantageassem, colocassem fotos íntimas ou nuas minhas na internet ou, digamos, com Cindy Crawford em uma sauna. Ainda assim, vivia recebendo provocações. Alguém deve estar pagando nossos dançarinos para criar conflitos, encenar pequenas revoluções e me confrontar tanto publicamente como nos bastidores.

GR: A inveja contaminava o balé russo no passado, mas não havia grandes tentações financeiras nos teatros soviéticos. O que fez você pensar que o dinheiro motivou essas ocorrências?

S.F: Isso ficou claro seis meses atrás. A polícia me mostrou um pen drive com todas os meus e-mails pessoais nele; descobriu-se então que uns hackers de Tcheliabinsk tinham invadido minha conta de e-mail por cerca de US$ 200. Mas quem mandou fazer isso continuou segredo. Meus agressores publicaram alguns dos e-mails na minha página do Facebook. Fiquei surpreso com o fato de sete pessoas, alguns provavelmente envolvidos nesse crime, pedirem para adicioná-los como amigos naquele mesmo dia.

GR: A polícia está questionando seus dançarinos todos os dias. Você consegue imaginar quem poderia ser o agressor?

SF: Eu pego um pedaço de papel em branco e tento me imaginar pintando o retrato não da pessoa que jogou ácido no meu rosto, mas de quem encomendou o crime. Essa pessoa definitivamente nunca teve família ou filhos. Nenhum pai ou mãe, não importa o quão ofendido comigo, seria capaz de destruir minha chance de ver meus três filhos crescerem. Talvez essa pessoa também não tenha pais. Uma característica prevalece no retrato: a solidão. Só um homem muito doente e solitário para fazer isso. Confessei meus pecados a um padre e prometi perdoar a todos que me desejaram mal.

GR: Você acredita que há vontade política suficiente para encontrar o agressor?

SF: Hoje em dia eles poderiam resgatar um homem se afogando no rio Sena com uma foto minha em seu casaco e dizer que foi ele o culpado. Sinceramente, não conto com isso.

GR: No ano passado, Nikolai Tsiskaridze e seus apoiadores coletaram assinaturas para uma petição entregue a Vladímir Pútin, na qual pediam para demitir Iksanov e nomear Tsiskaridze como diretor do Bolshoi. Mas o Kremlin estendeu o contrato de Iksanov até 2013. Você teve a oportunidade de falar com o Kremlin sobre os problemas de administração do Bolshoi?

SF: Sim, as tensões aumentaram logo após a nomeação de Iksanov. Falamos tanto com Vladímir Pútin como Dmítri Medvedev (quando ele ainda era presidente da Rússia) sobre a importância de brecar os conflitos no Bolshoi. Mas a questão é se as autoridades vão ajudar a resolver o problema. Quem são essas pessoas que estão aterrorizando o palco do Bolshoi há tanto tempo? Se isso continuar em segredo, eu, qualquer cidadão russo, pai ou contribuinte honesto, ficará sempre se perguntado o que mais no nosso país mereceria uma reação oficial.

 

Anna Nemtsova é correspondente em Moscou da Newsweek e do The Daily Beast.

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