Existe uma culinária russa?

Os chefs de cozinha e donos de restaurantes russos de hoje são incapazes de chegar a um consenso sobre o que poderiam, de fato, considerar a verdadeira culinária russa: a coleção de um museu de receitas caseiras e antigas das avós, os resquícios da tradição soviética ou o resultado da globalização, uma espécie de fusão internacional?

 No caminho que corre ao longo do reservatório Golítsinski, um grupo de cerca de trinta pessoas observa com grande interesse o químico e ex-fotógrafo Ivan Chíchkin, agora chef do restaurante moscovita Delicatessen, enquanto fatia cebolas, um enorme alho, pimentas, cogumelos e um assado de presunto caseiro. Ao lado dele, há uma grande panela no fogo. O cozinheiro joga a carne e os cogumelos no óleo quente e ordena: “Tragam-me a espelta”. 

No parque Górki, em Moscou, onde está acontecendo o festival gastronômico, Chíchkin decidiu preparar uma paella à base de espelta, um tipo de trigo pouco cultivado hoje, mas que era muito consumido cerca de 5 mil atrás. Todos os ingredientes, do presunto defumado aos cogumelos, bem como o alho, as ervas aromáticas e a espelta, são produzidos na Rússia. O sabor dessa paella também é tipicamente russo.

Chíchkin está convencido de que a culinária russa consiste na associação de pratos camponeses antigos com elementos da culinária russa contemporânea.

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Como ingredientes, pode-se usar repolho, nabo, pão de centeio e malte – todos fazem parte da tradição russa. Chíchkin usa, por exemplo, o pão borodinski, um tipo de pão preto com especiarias, para fazer massa de ravióli. O resultado é um prato incrível que, embora tenha sabor acentuadamente nacional, não está diretamente relacionado ao país e possui valor internacional. “Preparo pratos que possam cair bem em qualquer país, procurando, contudo, usar produtos e características locais. Acredito que essa é a única maneira de criar uma nova culinária russa.”

Aleksêi Zimin, chef e dono de restaurante, também está certo de que uma culinária nacional viva não pode ser feita sem uma dose certa de cosmopolitismo. No cardápio de seu café Ragu, combina curry com sorvete de beterraba e o mesmo pão borodinski, e abobrinhas fritas acompanham hambúrgueres.

Quando questionado sobre o lugar ocupado pela culinária russa nas tendências internacionais, responde que, no momento, nenhum. “A culinária não é como petróleo: não é possível transformá-la de repente em um produto para exportação. Nesse caso, não se exporta apenas a receita, o gosto, a combinação de ingredientes ou a técnica de preparo, mas também um certo sentimento nacional.”  

Chíchkin acredita que o período soviético tenha sido completamente destrutivo para a gastronomia russa. O sistema de alimentação voltado ao público, como todas as outras coisas, também era totalitário. A padronização estatal não fez nada a não ser acabar com qualquer tipo de iniciativa. É por isso que, segundo ele, os cozinheiros esqueceram como improvisar. "Prefiro sempre trabalhar com cozinheiros sem passado soviético, porque, na verdade, a escola culinária na URSS era inexistente", explicou.

Há pouco tempo, não só na Rússia como em todo mundo, as pessoas parecem ter começado a se interessar pela história e tradições culinárias. Mas isso geralmente se manifesta na tentativa de encontrar um uso incomum dos ingredientes mais corriqueiros, tais como batatas. Quando se trata de purismo culinário, Zimin afirma que isso não existe mais nem sequer na Itália ou na Espanha.

“Nos dias de hoje, todos viajam e veem as tradições de diferentes países; assim, permanecer puro parece um caminho muito difícil”, concorda Chíchkin. 

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